quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

E no fim sobrou apenas o charlatanismo


Eu nunca me esqueço da primeira vez que ouvi a frase: "no fim, somente as baratas sobreviverão ao inferno e à explosão nuclear" e me lembro do riso nervoso que dei ao ouvir a declaração. Realmente, baratas são seres terríveis e você tem a legítima sensação de que elas não morrem nunca e sim proliferam, de forma ininterrupta. Contudo, há uma outra classe que, passe o tempo que for, estejamos nós no século XL, eles nunca deixarão de existir. Falo dos golpistas, charlatães, estelionatários, gente que devota sua vida a enganar os outros. 

Eu às vezes me pergunto se nós, cidadãos de bem, vivemos tanto quanto eles, pois à primeira vista o que eu vejo é uma multidão de cafajestes que só faz crescer a olhos vistos, entra ano sai ano. E eis que o diretor Guillermo del Toro se propõe a contar uma história de cunho meio noir com seu O beco do pesadelo, recém-indicado ao Oscar de melhor filme, e acaba me fazendo pensar em outras questões completamente diferentes (digamos, mais ácidas).  

No novo longa de Del Toro acompanhamos a saga de Stanton Carlisle (Bradley Cooper), que chegou aquela etapa da vida em que percebe a duras penas que trabalho duro e ética não são suficientes para salvar o patrimônio da família. Como adendo a essa descoberta, o fato dos EUA ainda viver o resquício do caos da chamada grande depressão, que devastou o país após a quebra da Bolsa de Nova York. Como único recurso, ele põe fogo na própria fazenda e parte rumo a uma nova vida. 

E a princípio ele encontra essa nova realidade num circo mambembe, repleto de figuras as mais detestáveis e oportunistas possíveis, mas também o amor - ou o que ele pensava ser o amor - na figura de Molly Cahill (Rooney Mara). Ao conhecer Pete (David Starthairn), um golpista que já teve seus dias de glória e que agora vive de pequenos golpes, ele aprende a arte do chamando mentalismo e vê nesse aprendizado seu passaporte para o sucesso. 

Cansado de uma vida pela metade e de ser colocado para escanteio a todo momento, ele - acompanhado de Molly - vai para a cidade e se torna um mentalista famoso e conceituado. Seus truques, que a plateia considera um dom divino, são capazes de transformá-lo na atração do momento. Mas ele, no fundo, como todo golpista que se preze, deseja mais. E quando conhece a ardilosa terapeuta Lilith Ritter (Cate Blanchett), ele se depara com a chance de dar o golpe perfeito. 

Ela o apresenta ao alto escalão dos seus clientes, homens ricos, mas completamente sem alma, desesperados por um fiapo de esperança que os console das perdas sofridas ao longo da vida. E essa é a chance de Stanton conseguir fazer sua independência financeira de vez. Entretanto, o que ele se esqueceu de levar em conta é que normalmente, no mundo onde homens como ele habitam, você está sempre rodeado de pessoas tão ruins ou piores do que você mesmo, e isso pode gerar consequências altamente destrutivas. 

Stanton é um homem que nunca teve o amor do próprio pai e reagiu a isso de forma extremamente brutal e vingativa. Ele é o exemplo vivo do que a vida pode fazer com você quando guardamos nossos traumas e os transformamos em força motriz para seguir em frente. O resultado dessa equação é sempre desastroso. E para quem vive segundo suas próprias regras, acreditando que os demais não passam de futuras vítimas a serem descartadas, o que sobra ao fim são as agruras do próprio charlatanismo, que nunca oferece uma zona de conforto agradável. 

Para quem esperava uma produção mais police novel, O beco do pesadelo é meio decepcionante. Na verdade, a narrativa é um tanto irregular em alguns momentos. Tive a sensação, na segunda parte do longa, de já ter assistido àquele filme antes dirigido de forma mais brilhante. O segmento do circo me pareceu mais coeso e ele poderia ter centrado a película toda nele. Entretanto, ao contrário do que andei lendo nas redes sociais e nos portais de cinema, que consideraram o filme o mais fraco da carreira do diretor, confesso que ele ainda me agradou mais do que alguns dos últimos projetos dele (principalmente A mansão escarlate e A forma da água). Podem até me chamar de louco, mas achei que faltou disciplina artística. O projeto em si não era um equívoco. Longe disso. Ele apenas deveria ter tomado um outro caminho. 

Dentro do caminho proposto, ficou-me a impressão de ter visto uma grande alegoria sobre a maldade humana e suas consequências nefastas. E o problema é que esse cinema já vem sendo mostrado em excesso nos últimos tempos em hollywood, daí um pouco da minha decepção. Eu esperava um novo caminho, algo mais original. Mas tudo bem. Não se pode acertar sempre. Nem sempre é possível tirar um novo O labirinto de fauno da cartola!

Ainda assim, recomendo aos fãs do diretor que vejam o longa, que possui uma direção segura, é bem produzido e tem um elenco interessantíssimo (que ainda conta, além dos atores já citados, com Willem Dafoe, Toni Collette, Richard Jenkins, Mary Steenburgen e o eterno parceiro Ron Perlman, de Hellboy).

P.S: O filme de Guillermo del Toro é um remake do clássico O beco das almas perdidas (1947), do diretor Edmund Goulding. E eu recomendo aos fãs da boa sétima arte que o vejam, pois o original me pareceu bastante superior à esta versão aqui. Isso, é claro, se você - como eu - também curte cinema em preto-e-branco.   


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