Já cansaram de me perguntar "por que é que você gosta tanto de ler esse cara? Ele vive de provocar os outros, de incomodar!". E eu sempre respondia: "e esse é o maior trunfo dele. Jornalista que não incomoda é como funcionário público que vai na repartição só pra bater ponto. E desses eu quero distância". Estou falando logicamente do cineasta, cronista e jornalista Arnaldo Jabor, que faleceu hoje aos 81 anos, por complicações de um AVC. Ele estava internado no Hospital Sírio-Libanês desde dezembro do ano passado.
Jabor era um camaleão e se orgulhava disso. Dessas figuras anárquicas que você, leitor ou espectador, fica no aguardo toda vez que ele vai realizar um comentário sobre o que quer que seja. Política, costumes, sexualidade, preconceito, cultura pop, não havia tema ao qual ele não discorresse com categoria e, claro, provocação.
Porém, antes dele apresentar - junto com Paulo Francis e Joelmir Beting - uma das colunas mais aguardadas da televisão brasileira e escrever muitos dos textos mais ardilosos (e sensacionais) da imprensa nacional no Estadão, na Folha de São Paulo e, posteriormente, em O Globo, ele foi um cineasta de mão cheia. Fez parte da segunda fase do cinema novo, com seus longas cheios de alfinetadas à moral social e à hipocrisia retumbante que nunca abandona o país.
Um detalhe curioso: há um aspecto na carreira cinematográfica de Jabor que me fez lembrar do cineasta Woody Allen. Ele também foi um grande diretor de atrizes e muitas delas saíram premiadas de seus longas. Que o digam Darlene Glória em Toda nudez será castigada (1973) e Camila Amado em O casamento (1975) - vencedoras do Kikito de melhor atriz no Festival de Gramado - e Fernanda Torres em Eu sei que vou te amar (1986), primeira atriz brasileira a ganhar a Palma de Ouro em Cannes. A produção com Darlene ainda venceria o Urso de Prata no Festival de Berlim.
Em sua obra audiovisual, onde realizou sete longas, dois curtas e dois documentários, víamos uma admiração (na verdade, uma devoção) clara ao dramaturgo Nelson Rodrigues, bem como inúmeras ironias e questionamentos ao país e à sociedade, com suas famílias retrógradas, afundadas até a cabeça num moralismo babaca e sem sentido. E isso era o que a sua narrativa tinha de melhor: Jabor, até o fim da vida, não fez média com ninguém porque isso simplesmente não lhe interessava.
Gosto particularmente de dois filmes dele, não necessariamente os mais famosos: Opinião pública (1967), em que mostra a dificuldade do povo brasileiro em enxergar e administrar a sua própria realidade e Eu te amo (1981) em que, através de um casal que marcou um encontro aleatório dentro de um apartamento, ele expõe as aflições e o niilismo de uma geração que acreditou num sonho político que não se concretizou.
Com o desastroso governo Collor e o fechamento da Embrafilme em 1990, Jabor se afastou das telas e passou a escrever crônicas para jornais e também a fazer comentários políticos em programas de TV (Fantástico, Jornal Nacional, etc) e rádio (CBN), mostrando uma outra faceta ainda mais ácida como comunicador. Foi nesse momento que ele ganhou de minha parte o apelido de o comentarista incomodado, pois eu sempre tinha a sensação de que ele iria falar algo que, volta e meia, irritaria alguém. Mas seu discurso nunca era vazio ou persecutório. Ele era, em suma, uma metralhadora verborrágica no melhor sentido da palavra.
Dos oito livros de crônicas que publicou, dois se tornam best-sellers: Amor é prosa, sexo é poesia (2004) e Pornopolítica (2006), que eu devorei em poucas horas, tamanho o meu fascínio por seu raciocínio ligeiro e brilhante. Contudo, recomendo aos leitores mais enjoados que gostam de fugir do que é consagrado, que procurem pelo seu primeiro livro, Os canibais estão na sala de jantar. Aqui, ele já mostrava o grande reacionário que se tornaria com o passar dos anos. O germe de suas provocações está presente neste volume de forma ainda incipiente, mas genial.
24 anos depois de seu (até então) último longa, em 2010 Jabor dirige A supremacia felicidade. E com ele regressa ao Brasil de ontem para nos dizer que a sociedade continua cafona e enfadonha. E precisa urgentemente mudar. É visível seu sarcasmo ao relatar a condição da mulher, para ele ainda vivendo numa bolha, sempre em segundo plano em relação à figura masculina (e este era um tema que incomodava - e muito! - o diretor). O filme acabou por se tornar um fetiche meu recorrente, pois sempre que ele é reprisado no Canal Brasil eu o vejo novamente. Um despedida soberba que é a cara dessa figura eternamente intrusiva e debochada.
Por mais que eu saiba que seus filmes e livros estão por aí e podem ser reassistidos e relidos quantas vezes eu quiser, um fato é certo: a imprensa e o cinema nacional perderam uma de suas maiores e mais diletantes vozes. Não será mais a mesma coisa ficar por dentro do que acontece no país sem a coluna - escrita ou falada - do Jabor. E em meio a tanta gente estúpida, que só fala besteira, exalta o nazismo, vive aprisionada às fake news e à desinformação, a vida teve que nos tirar justamente quem sabia o que dizer e quando era a hora. Uma pena.
Jabor, você não tem ideia da falta que vai fazer na vida de milhares de leitores brasileiros. Vou ser um eterno devedor da sua elegância narrativa e da sua inteligência mordaz. Fica com Deus, mestre!
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