Eu sei que vai parecer clichê a muitos leitores, mas quem diria que um reles filho de tapeceiro, órfão desde criança, chegaria tão longe produzindo teatro num dos países mais esnobes (à época) e intelectualizados da Europa em pleno século XVII. Refiro-me, obviamente, a Jean-Baptiste Poquelin, que provavelmente você, caro leitor, conhece mais pelo pseudônimo que o consagrou: Molière.
Assim como Shakespeare na Inglaterra, Molière é um fenômeno inegável das artes cênicas e aqui no Brasil, repleto de grandes comediógrafos, ele é certamente um capítulo à parte. Mestre da comédia satírica, esmiuçou como poucos à seu tempo a personalidade e o caráter humano, tornando sua obra um grande estudo de caso sobre o assunto. "Por trás de cada gargalhada, me disse certa vez um senhor que conheci no teatro Cacilda Becker, no Catete, e grande fã do dramaturgo, "é preciso estar atento a fina ironia, ao deboche calculado, direcionado a uma denúncia feroz sobre o que acontecia naquela sociedade de outrora". E ele foi preciso ao dizer isso.
E eis que este mestre incontestável chega, em 2022, ao seu aniversário de 400 anos e não fosse a lastimável pandemia que ainda nos assola estaríamos vendo um grande enxame de montagens sobre a sua obra em todos os cantos do país.
Molière nasceu em 15 de janeiro de 1622 numa França de grande importância política para a Europa. E se dependesse do Rei Luís XIV e do Cardeal Richelieu a área cultural do país receberia a mesma atenção, tanto que o teatro naquele período vivia o seu apogeu. Contudo, a profissão do ator era muito marginalizada e excomungada, tanto pela opinião pública quanto pela igreja. O rei, apoiador e patrocinador de Molière, bem como financiador de várias companhias, chegou a assinar uma lei proibindo a desqualificação da profissão de ator, por considerar a atitude do povo e do clero um absurdo.
Molière poderia ter seguido os passos do pai profissionalmente e alguns historiadores e pesquisadores de sua obra, dizem que ele teria se formado em Direito e depois iniciado a carreira no teatro, mas ficou claro desde o princípio que o seu negócio eram os palcos, tanto que desde novo era visto com frequência nos tablados. E eu tenho uma opinião bastante pessoal sobre esse aspecto: acredito que ele tenha se identificado com o lugar desde cedo, pois ali encontrou o microcosmo fidedigno do que era a sociedade daquele tempo, com suas contradições e disparates.
Com os irmãos Joseph e Louis Béjart, Molière fundou a companhia L’Illustre-Théântre, onde se apresentou durante dois anos. Mas como não conseguiu bater de frente com as companhias de renome - a do Hotel de Bourgogne, Marais, etc - acabou contraindo dívidas severas, que chegaram inclusive a levá-lo preso durante um período. Acham que foi o suficiente para pará-lo? Nada! Após uma soberba montagem de uma peça de Racine, ganhou não somente elogios do Duque Filipe de Orléans, irmão do rei, como o monarca acabou assumindo o grupo do qual Molière fazia parte sob sua tutela, dando-lhe o nome de Troupe du Roi (ou Trupe do Rei).
Seu primeiro sucesso nos palcos vem com As Preciosas Ridículas, onde ele é pura ousadia ao apresentar uma farsa com elementos prosaicos, onde rostos enfarinhados e máscaras coloridas caricaturavam personalidades importantes e expunham-nas ao ridículo. Quem viu o resultado do espetáculo na época, diz que não foi à toa que ele ganhou do escritor Boileau o apelido de "O contemplador", tamanha sua facilidade em retratar os cidadãos da elite.
Contudo, com o passar das gerações e o aumento do prestígio de Molière, tem quem prefira Tartufo e a genialidade do falso devoto que se aproxima da família cristã para expor suas depravações (que escandalizou a igreja do período, tanto que ela conseguiu tirar o espetáculo dos palcos por um tempo) ou O Avarento, retratando a paradoxal condição do personagem central, cuja única real paixão que possui é pelo dinheiro e, no entanto, desejoso ao mesmo tempo de amor e respeito. Tempos atrás, aliás, houve uma montagem aqui no Brasil com o ator Tônico Pereira, verdadeiramente sublime!
Um detalhe providencial que me veio à mente agora: talvez algumas fãs do teatro Molieriano do sexo feminino prefiram os problemas morais e as virtudes e defeitos humanos de Escola de mulheres, ainda mais em tempos de feminismo cada vez ganhando mais força ao redor do mundo. Logo, fica a dica desta peça também.
Em meio a proibições, escândalos (casou-se com uma mulher 20 anos mais nova, em pleno período de puritanismo na França) e acusações de imoralidade, Molière foi um vitorioso das artes e soube enfrentar quem quer que fosse para ver suas ideias visionárias defendidas a qualquer preço. No final das contas, de irônico mesmo em sua trajetória fica sua morte (em 17 de fevereiro de 1673), ocorrida enquanto representava o protagonista de O doente imaginário. Até hoje poucos tabloides ou investigadores souberam dizer o que casou de fato o colapso que o matou em sua casa, em Paris.
Mas se eu disser que no mundo do qual Molière faz parte, dos gênios rebeldes e irascíveis, que não levam desaforo para casa, até mesmo este final é óbvio (tem até quem chame de clichê, como eu mencionei no primeiro parágrafo), vocês acreditam ou vão ficar putos comigo e dirão que eu estou me repetindo sobre isso? Enfim... Vida longa ao mestre e que venham os 500 anos o quanto antes!
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