sábado, 4 de dezembro de 2021

O Brasil de poucos


Muita gente vai negar - e brasileiro adora negar tudo! - mas a pandemia da Covid, que vem nos assolando desde 2019, desnudou muita coisa que vivia sendo varrida para debaixo do tapete. A única coisa que, infelizmente, todo esse processo devastador não ensinou foi a transformar a classe abastada desse país em pessoas melhores. E em certos sentidos acho até que eles pioraram consideravelmente. 

Entretanto, para a nossa felicidade, ainda existem pessoas (e eu me refiro a artistas) que decidiram falar contra essa gente e sua eterna mania de se acharem mais importantes ou indispensáveis do que o restante da sociedade. Foi exatamente essa a sensação que eu tive ao terminar de ler a HQ Confinada, da dupla Triscila Oliveira (responsável pelo roteiro) e Leandro Assis (desenhista). 

O projeto, que nasceu como uma série de tirinhas publicadas no perfil do instagram de Leandro, desnuda de forma feroz a relação entre patroas e empregadas durante o período de isolamento da pandemia. E acreditem: o nível de deboche, sarcasmo e prepotência é feroz. 

Acompanhamos a vida vazia de Fran, uma influenciadora digital, moradora da zona sul carioca, que mais parece um livro de auto-ajuda do que um ser humano, tamanha a quantidade de asneiras e alienações que fala e vende em seus vídeos positivistas. Ela é a favor da cultura good vibes, de ver sempre a melhor perspectiva para tudo e acredita piamente na meritocracia. O que ela não conhece é o mundo real ou o das pessoas que não vivem sob o mesmo status que ela. Como, por exemplo, sua empregada Ju.

Na verdade, ela tinha três empregadas (como se todas elas fossem realmente necessárias), mas duas delas, Dinah e Marli, decidem se afastar do trabalho para cuidar de suas famílias - e bem fazem elas! Ju decide ficar, pois tem filhos pequenos para criar e faz um acordo financeiro com a patroa que seja interessante para ela, mas sabe que essa não será uma tarefa nada fácil. 

Como pano de fundo para construir essa narrativa seca, difícil de engolir, mas necessária, temas como desigualdade, racismo, classismo, intolerância religiosa, injustiça e o que mais você puder imaginar desde que o atual governo assumiu o país nos últimos anos, propondo uma pauta "conservadora".

Tudo de mais recente que tenha ganho destaque na mídia nos últimos tempos é esmiuçado aqui, seja de forma breve ou mais aprofundada. A questão do ensino online durante o período em que as escolas permaneceram fechadas, o desprezo à figura das mulheres paraíbas, a mania corriqueira de chamar quem pensa diferente da elite de comunista, pessoas que não respeitam o isolamento e chamam a doença de uma reles gripe, etc etc etc. 

Enquanto estava disponível apenas no instagram, as tirinhas de Leandro e Triscila mobilizaram mais de 750 mil seguidores, que tiveram paixões e ódios despertados com a mesma intensidade (e teve, sim, gente defendendo Fran como uma mísera incompreendida). E foi dessa mobilização internética que nasceu o interesse de transpor o trabalho para o material impresso, feito conseguido junto ao crownfunding.

Ao final da leitura, que é asfixiante de tão real e mordaz, o que Confinada nos oferece é um retrato vivo desse Brasil de poucos, que se acham autossuficientes e não se importam com nada que não seja o próprio umbigo ou a vaidade. 

E quanto ao futuro? a depender deles, os brancos privilegiados, de preferência que não haja favelas, cotas universitárias e direitos trabalhistas para todos, nem gente para roubar o que é deles por direito. No máximo, serviçais. E está de bom tamanho. 

(Breve, mas necessária nota: eu já imagino a quantidade de gente que vai ler este artigo e me detonar. Vão me chamar de esquerdopata e dizer que eu estou romantizando a pobreza e tudo. Mas, mesmo assim, falem. Fiquem à vontade para detonar. Isto aqui pode não ser um país sério, mas ainda é uma democracia).


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