Dizem os críticos de cultura que é da natureza dos artistas se metamorfosearem, transformarem-se naquilo que querem, quando querem e da forma como querem. No entanto, quando eu vejo certas figuras andróginas que são chamadas de artistas no Brasil de hoje, eu vejo o quanto esse raciocínio não funciona mais - pelo menos, com essa clareza. É nítida a falta e a carência na cultura pop nacional de nomes como Gonzaguinha, Raul Seixas, Belchior... Qualquer fã de boa música (e desde já adianto: o assunto deste artigo é música) sentirá eternas saudades dessa gente que fez e aconteceu, simplesmente porque tinha a capacidade e o talento necessários para isso.
Cássia Eller também fez parte desse grupo. Eu me lembro de quando a vi pela primeira vez se apresentando num programa de tv e de dizer automaticamente: "quem é essa mulher poderosa, de voz visceral, que arrebatou a plateia e os meus pensamentos com essa enorme facilidade? Muita gente falava que ela era complexa, difícil, antissocial. Mas, na maioria das vezes, não são assim os melhores? De concreto mesmo apenas uma certeza: Cássia varreu o chão dos palcos por onde passou com sua enorme potência vocal e sua rebeldia incontestável. E está fazendo muita falta na MPB nesse século XXI esquisito e cheio de gente que só quer saber de mandar na vida dos outros.
Vejo a matéria no caderno cultural do jornal O Globo falando dos 20 anos da morte de Cássia Eller (não fazia ideia de que já tinha todo esse tempo!) e da homenagem que farão a ela no Prêmio Multishow de música que será transmitido hoje à noite na tv a cabo e imediatamente minha mente se transporta para o dia do seu falecimento.
Eu trabalhava no Largo do Machado, mais especificamente no cinema São Luiz naquela época, quando ao chegar um dia para o serviço passo na Rua das Laranjeiras em frente à uma modesta clínica e vejo uma multidão de pessoas segurando faixas e cartazes com o nome da cantora. Me peguei completamente perplexo porque no noticiário da manhã nenhuma emissora havia informado que a cantora estava internada. Vejo gente chorando por todos os lados, sentados perto de um posto de gasolina que ficava ali perto.
Passo em frente, andando em ziguezague por entre os fãs inconsoláveis, chego ao cinema, assumo meu posto e o dia transcorre como todos os outros anteriores. Por volta de umas três, três e meia da tarde, fico sabendo que Cássia faleceu. E aquilo me entristece na mesma hora. Ela era, naquela momento, pelo menos para mim, a cantora mais representativa do país. Seu maior sucesso da carreira, o cd MTV Acústico, estava ainda estourado nas paradas de sucesso. E o público, sempre ensandecido em suas apresentações, acompanhava junto, comprava sua briga onde quer que fosse.
Como esquecer da cantora que em plena apresentação no Rock in Rio exibiu ao público, com toda coragem e ousadia que lhe era pertinente, os seios, numa prova cabal de que não tinha nada a temer a ninguém? Naquele exato momento ela disse a todos que estavam ali, mais o que assistiam ao festival pela tv: "eu sou isso aqui e ninguém na face da terra vai me mudar!". Grande Cássia!
Ela virou a trilha sonora da minha vida. Onde quer que eu fosse ou se estivesse em casa escrevendo, lendo, fazendo o que quer que seja, estava ouvindo "Por enquanto", "Malandragem", "E.C.T", "Vá morar com diabo" (música de Riachão que não podia faltar em seu repertório), "Relicário", "1º de julho" (canção que Renato Russo escreveu para ela na época do nascimento do seu filho, Chicão). Uma voz que ia de Nirvana à Edith Piaf com a mesma naturalidade, o mesmo vigor.
De sua discografia punk, poderosa, mas que sabia suavizar quando necessário, tenho uma admiração toda particular por Cássia Rock Eller, no qual ela viajou de Jimi Hendrix à Legião Urbana, passando por Barão Vermelho e Cazuza, com toques suaves de Arrigo Barnabé e, claro, Rolling Stones. Quem não conhece o álbum, não sabe o que está perdendo.
Também recomendo o documentário homônimo do diretor Paulo Henrique Fontenelle (o mesmo do também extraordinário Loki, sobre o cantor Arnaldo Baptista) cheio de imagens de arquivo inebriantes e entrevistas fortes, contundentes, invadindo até mesmo a vida sexual da cantora.
A chamada para a exibição do show MTV Acústico na emissora dizia tudo o que você precisava saber sobre Cássia em poucas palavras: "ela é pop; ela é rock; ela é rap; ela é fúria...". Sim, ela era tudo isso e muito mais. Cássia Eller foi a grande camaleoa da MPB daquele final dos anos 1990, capaz de se mimetizar da forma como queria, enfrentando tudo e todos, seja por sua opção sexual, seja por seu gosto eclético. Como bem disse Oswaldo Montenegro no documentário de Paulo: "ela uniu a classe artística, do forró ao funk, do sertanejo ao rock". Ela era tudo, todos, o isso, o aquilo e o algo mais.
E que saudades - Meu Deus! - essa mulher vai deixar na nossa música. Nunca mais deixaremos de ser órfãos daquela moça feroz que dizia "quem sabe ainda sou uma garotinha", mas no fundo não parava quieta, porque não conseguia, Não era da natureza dela ser comum.
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