Antigamente quando eu me excedia
ou fazia alguma coisa errada
naturalmente minha mãe dizia
"Ele é uma criança, não entende nada"
por dentro eu ria satisfeito e mudo
Eu era um homem e entendia tudo...
É, Erasmo, não foi só você não, meu caro! Eu passei por isso também e foram várias vezes (até porque minha mãe, que Deus a tenha lá em cima em bom lugar, jogava duro a maior parte do tempo).
A canção "Sou uma criança, não entendo nada", que integra o box Mesmo que seja eu com os discos do cantor Erasmo Carlos gravados nas décadas de 1970 e 1980, espelhou de forma nítida a minha infância e puberdade, bem como acentuou a minha relação de admiração por um cantor e compositor que, injustamente, sempre foi visto - pela crítica e por quem nada entende de música - como a sombra do rei Roberto Carlos. Em uma palavra: ignorância.
E eis que hoje, 22 de novembro, dia do músico (que ironia!), ligo o celular e me deparo com a notícia de que Erasmo, o eterno tremendão, nos deixou aos 81 anos de pura sabedoria, após ter sido internado de novo. Logo ele, que no dia de finados, ao ser liberado pelo hospital, fez piada, dizendo: "não me quiseram". A MPB, assim como chorou recentemente com Gal Costa, verte lágrimas profundas novamente, pois perdeu um dos seus gênios mais incompreendidos.
O menino que nasceu em 1941 em plena Tijuca efervescente de rebeldia, que virou do avesso a Rua do Matoso junto com Tim Maia e Jorge Ben em suas múltiplas travessas de roqueiro em formação, que fundou tanto The Sputniks (1957) como The Snakes (1958), que trabalhou ainda novo na Rádio Nacional com Carlinhos Imperial e viu na música o único caminho possível para se chegar em algum lugar, aprontou tudo e tirou todas de letra.
Com Roberto Carlos, Wanderléa e companhia ilimitada agitou as jovens tardes de domingo e apresentou ao mundo a Jovem Guarda (que os puristas, é claro, nada entenderam e ainda debocharam). Na verdade, a crítica nunca o entendeu de fato e quis rotulá-lo. Impossível. Ele sempre foi mais irrequieto do que ela.
Os sucessos, pergunte a qualquer fã, eles conhecem de cor: "É preciso saber viver", "É proibido fumar", "As curvas da estrada de Santos", "Emoções", "Detalhes", "Jesus Cristo", "Além do horizonte", "Se você pensa", "Nossa senhora", etc etc etc... Contudo, eu gosto de exaltar o fato de que certas canções sempre tiveram mais a cara dele do que da dupla. Falo de músicas como "Todos estão surdos", "Sentado à beira do caminho", "Minha fama de mau" e o clássico eterno "Festa de arromba". Isso, sem contar, seus hits solo como o inoxidável "Pega na mentira", "Mulher (sexo frágil)" e "Mais um na multidão" (em parceria com Marisa Monte).
São mais de 600 composições que não saem da boca do povo e por lá permanecerão pela eternidade. Agora mesmo, enquanto escrevo este arremedo de artigo-homenagem, uma vizinha aqui do lado ouve "cavalgada". E, provavelmente, chora. É, Erasmo...
Entre os que colecionam e amam seus álbuns dois são sempre citados com paixão: Carlos, Erasmo (1971) - cheguei a ouvir pessoas falando dele doentiamente - e Erasmo Carlos convida (1980), em que dividiu o microfone com outras estrelas do naipe de Maria Bethânia, Nara Leão, Gilberto Gil, Rita Lee, Caetano Veloso e, claro, o amigo do fé, o irmão camarada, dentre outros.
O gigante gentil, outro apelido com que foi agraciado pelos amigos, teve marca de roupa e também se aventurou pelo cinema. Assistam, assim que possível, Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa (1968), Roberto Carlos a 300 quilômetros por hora (1971) - ambos do diretor Roberto Farias - bem como Os Machões (1972), de Reginaldo Faria. Há também uma participação dele, nostálgica, em Paraíso Perdido (2018), de Monique Gardenberg. Erasmo era múltiplo, debochado e arisco. E isso era o que mais os fãs gostavam nele!
São poucos os artistas que passaram por inúmeros desafios e sobreviveram, deram a volta por cima. Erasmo é desses. Foi vaiado no Rock in Rio 1985 (por uma geração que, certamente, não entendeu - e não entende até hoje - o que ele cantou), fez ode à maconha em "De noite na cama" e foi mal compreendido, enfrentou um tumor no fígado, perdeu um filho e a primeira esposa, Narinha, foi desacreditado pelas gravadoras num certo momento, pois não entendiam o seu estilo, a sua marca pessoal, e ainda assim... continuou grande.
Na última entrevista que vi com ele, num videocast, disse sua última frase antológica: "hoje em dia o tosco é enaltecido", referindo-se à pobreza musical dos dias de hoje. Soberbo e sucinto! Como foi em toda a sua vida e carreira. Mestre, onde quer que você esteja neste exato momento, fica em paz, com Deus, e com a certeza de que sua obra é - e sempre será - maiúscula. Se tem algo de que eu me ressinto na vida é de não ter feito parte da sua geração. E muito obrigado, por tudo.
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