Não é à toa que a palavra música pertence ao gênero feminino. É para que não nos esqueçamos jamais de vozes eternas, que vieram ao mundo com o único propósito de embalar as nossas vidas e os nossos sonhos. Elis Regina, Whitney Houston, Elza Soares, Adele, Billie Holliday, Tina Turner, Ella Fitzgerald, Mercedes Sosa... São tantas, inúmeras, cada uma com o seu estilo, sua vida, seus dilemas.
Hoje - é triste dizer isso, mas não tem outro jeito - a música popular brasileira chora e lamenta (muito!) a perda de uma das suas maiores vozes. E digo mais: se passarão décadas até que outra a suceda no mesmo nível. O país viu partir, aos 77 anos, a cantora Gal Costa.
Talvez os fanáticos por Elis se irritem com o que vou dizer agora, mas... Para mim, Gal era com folga a maior cantora do Brasil. Ela pontuou toda a minha relação com a música nacional desde que eu me entendo por gente e ouvinte.
A menina Maria da Graça Costa Penna Burgos tinha um sonho. E mesmo trabalhando como vendedora numa loja da Roni Discos ou sentindo a ausência do pai (que faleceu quando ela ainda era uma adolescente), nada a demoveu dele. Seu destino era cantar. Mais do que isso: brilhar. E assim o fez. A começar pela estreia em junho de 1964 no show Nós, por exemplo, realizado na inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador).
Sua voz era única, capaz de duelar até mesmo com os riffs da mais potente guitarra (duelo esse que ela encarou de frente, ao vivo). Deu voz à artistas sensacionais da MPB que, não fosse a perspicácia e o talento dela, provavelmente hoje teriam morrido no ostracismo. Que o digam o poeta Waly Salomão (de quem gravou "Vapor barato") e Luiz Melodia (sua interpretação de "Pérola negra" é única!).
Deixou registrado em nosso cancioneiro milhares de sucessos que certamente estão sendo ouvidos e reouvidos nesse exato momento: "Um dia de domingo" (que celebrizou num dueto marcante com Tim Maia), "Chuva de prata", "Baby" (faixa indefectível do álbum seminal Panis et circensis), "Barato total", "Festa do interior", "Divino maravilhoso" (expressão citada até num longa de Glauber Rocha), "Brasil", "Tigresa", "Sorte", "Vaca profana"... E um detalhe à parte: ninguém, absolutamente ninguém, cantou "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, como ela.
No quesito discos gravados o meu coração fala mais alto, pois é praticamente impossível não me lembrar dos exatos dias em que ouvi seus melhores trabalhos a primeira vez. E a segunda. E a terceira. E todas as demais. A música de Gal é mediúnica nesse sentido. Sua expressão corporal, então, nem se fala... Como esquecer da turnê de Fa-tal: Gal a todo vapor, a ousadia, os seios de fora, a coragem, sem pudores ou receios? Aquilo entrou para a história e permanece, vivo, mais do que nunca.
E justamente por não conseguir ser preciso ao esmiuçar tamanha coragem, tamanho enfrentamento, deixo abaixo - até porque é preciso fazer com que essa "nova geração" fascinada por artistas de plástico conheça a voz e a atitude dessa moça - um top 5 básico da discografia dela:
Gal Costa (1969);
Fa-tal: Gal a todo vapor (1971);
Cantar (1974);
Doces Bárbaros (1976)*;
Caras & bocas (1977).
*Só a reunião com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia já renderia um artigo próprio e inesgotável de ideias. Este é um álbum para se ouvir todo ano, pelo menos umas 30 vezes ao ano, até o fim da vida. Ouçam. Pelo amor de Deus, ouçam! Agora, se possível.
E como um precioso bônus track ainda vale uma fuçada no extraordinário Acústico MTV, que ela lançou em 1997, repleto de clássicos da MPB repaginados ("Falsa baiana", "Força estranha", "Como 2 e 2", "Paula e Bebeto", "London, London", "Lanterna dos afogados, entre outros). Tem fã que diz que esse é o ato final da carreira dela. Eu, tenho minhas dúvidas.
Gal faleceu sem ter visto a cinebiografia que fizeram sobre ela (Meu nome é Gal, dirigida pela dupla Dandara Ferreira e Lô Politi, e com a atriz Sophie Charlotte interpretando-a). Uma pena! Como também foi uma pena ela precisar cancelar seu show no recente festival Primavera Sound por conta de uma cirurgia no nariz. Enfim... A vida não permite avisos, ensaios, estreias. Ela simplesmente acontece.
Como resumir essa força da natureza? Impossível! O máximo que dá para dizer nesse momento tão triste é que Gal Costa era a voz que não desafinava. Pronto. Agora vão lá descobrir quem ela era nos you tubes e spotifys da vida.
E chega, gente. É hora da despedida. Fica com Deus, moça! E você vai fazer uma falta danada aqui embaixo. Ô se vai!
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