Quem me dera todo começo de ano eu me deparasse com obras artísticas tão boas quanto as que caíram em minhas mãos nesse começo de 2020. Não bastasse ser engolido pela visceralidade do poeta Jason Reynolds no seu extraordinário "romance em versos" Daqui pra baixo, agora viajo no tempo com uma graphic novel que é nostalgia pura. Mais do que isso: o resumo do que foram os meus anos de moleque travesso.
Termino de ler Kombi 95, de Thiago Ossostortos, com os olhos marejados de lágrimas e ciente de que toda a minha adolescência valeu a pena, independente das dificuldades que passei e das estripulias que cometi. E é muito fácil explicar o porquê: trata-se do raio-x de uma geração e de uma década que, cá entre nós, nunca deveria ter acabado.
O autor - que é figurinha conhecida dos fanzineiros de plantão e também dos leitores da revista Mad - a priori recorre a uma lenda urbana famosa na São Paulo de meados dos anos 90. Trata-se da história de um grupo de homens vestidos de palhaço que sequestravam crianças com uma kombi branca para roubarem seus órgãos. Na obra ficcional, a vítima chama-se Albino. Contudo, há um outro aspecto da vida desse jovem que seus próprios colegas de rua não têm conhecimento e por conta disso farão justiça com as próprias mãos precipitadamente.
Vocês devem estar pensando: "trata-se de uma história de crime". Não necessariamente. O grande mérito de Kombi 95 é realizar um passeio lúdico por uma época que deixou saudades na vida de quem a viveu. E mesmo sendo carioca (e não paulista como o autor), fiquei emocionado toda vez que me deparava com as referências que ele citou no álbum. Foi como se uma fenda no tempo se abrisse dentro da minha cabeça e me transportasse de volta para aqueles dias...
E olha: haja referência para dar conta das mais de cem páginas, todas feitas à mão, em nanquim, e colorizadas em computador! A começar pelas páginas que abrem os capítulos e fazem alusão aos salgadinhos da Elma Chips: Fandangos, Cebolitos, Ruffles, Pingo de ouro, Stiksy, Doritos, etc. Mas não somente isso.
São lembranças as mais diversas, para todos os gostos: Adriane Galisteu na capa da Playboy, Rê Bordosa, Tazos (tinha gente que comprava os biscoitos só para colecioná-los), pager, chocolate surpresa, pirocópteros (pirulitos que vinham com uma hélice para que depois colocássemos o cabo para voar), fichas telefônicas dos orelhões, os grupos de pagode (Negritude Júnior, Raça Negra, Katinguelê, Soweto, etc), Bill e Ted, o programa infantil Glub-Glub (a minha irmã era viciada nesse troço!), Beavis e Butthead na MTV, Cavaleiros do Zodíaco, Mesbla, Lojas Arapuã, o garoto propaganda da Bombril e o baixinho dos comerciais da cerveja Kaiser, poupança Bamerindus, Mappin, Jô Soares 11 e meia, banheira do Gugu, Street Fighter, os minigames, o jogo da vida, Família Dinossauro, TV Colosso, o fantástico mundo de Bobby, Sai de baixo, Bananas de pijamas, o telecatch exibido na Rede Manchete, Playcenter, o repórter Gil Gomes, a febre dos tamagochis... Ufa! É a cereja do bolo do álbum.
Thiago, em entrevista dada no youtube, não esconde a relação da revista com sua própria vida, os amigos da escola, as histórias que ouvia naquele tempo. E Kombi 95 é meio que a juventude de toda a nossa geração, minha, dele, de tantos mais, contada sem rodeios, de maneira apaixonada e quase metódica.
Em meio a tanta coisa publicada no gênero atualmente e escorada em histórias mirabolantes, cheias de criaturas sobrenaturais, teorias conspiratórias e heróis acima de qualquer suspeita, é louvável e digno de aplausos quem decide recorrer ao simples, ao cotidiano (aliás, nunca foi tão difícil falar do cotidiano como nesse século XXI, cada mais apegado ao grandioso e ao espetacular).
Detalhe: encontrei a página do autor no Instagram e fiquei sabendo da existência de um outro álbum de sua autoria, de nome Mjadra. Preciso dizer que já estou procurando por ele nas magazines e livrarias que frequento?
Procurem. Eu achei a minha numa das filiais da livraria saraiva num saldão, acreditem se quiser!, praticamente abandonada, por menos de 20 reais. Achei um crime cultural. E se você, como eu, também viveu esse período com intensidade, corra atrás mesmo, antes que ele suma das prateleiras. É quase uma enciclopédia (mas com um colorido extremamente psicodélico e um linguajar da nossa turma).
Ah! E tem uma playlist no final do álbum com todas as músicas mencionadas na história. Uma trilha sonora afetiva desse período. Achei o máximo!
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