quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Cadeia alimentar


Toda vez que eu leio (e releio) o quadrinista Frank Miller - mestre por trás de álbuns seminais da nona arte como Ronin, O cavaleiro das trevas e Elektra assassina - eu chego à conclusão de que aquelas pessoas que gostam de chamar as histórias em quadrinhos de "arte marginal" não entendem absolutamente nada desse universo. Mais: querem, no fundo no fundo, diminuí-la isso sim. 

E recentemente eu decidi reler Sin city: a cidade do pecado com a intenção de aparar algumas arestas que, porventura, tenham ficado de minha leitura original, e ainda ficou mais nítida essa minha impressão. O cara é definitivamente um mestre e não tem nada de marginal. Não vejo suas histórias à margem da sociedade. Pelo contrário. Ele desnuda o mundo cruel no qual vivemos como poucos. 

E em Sin City isso ainda ganha o requinte luxuoso de sua habilidade ímpar para trabalhar com luz e sombras (algo que sempre foi a marca registrada do artista). 

Acompanhamos de forma angustiante a saga de Marv, um retrato vivo dessa metrópole cinza e destruída pela ausência de valores morais dignos. Ele está dormindo quando a mulher que mudou a sua vida, a única que foi capaz de lhe entender, Goldie, é assassinada, e decide pegar o desgraçado que fez isso com ela. Mas trata-se de uma missão inglória e ele terá de enfrentar muitos percalços além do sarcasmo e a ironia habituais de uma cidade que simplesmente não facilita para ninguém, ainda mais quando se está na rabeira da chamada cadeia alimentar. 

E quem manda nesse lugar é Roark. Mais do que um político, um empresário de sucesso, um midas, etc etc etc, ele é o sintoma vivo da hierarquização social doentia e tendenciosa dos novos tempos. Em outras palavras: ele representa a doença social que o mundo precisa fabricar para justificar o desnível social e a incapacidade de vivermos juntos em harmonia. 

Mas acham que Marv desistiu por causa disso? Nem pensar! Sempre rodeado por belas mulheres (a dançarina Nancy; sua agente de condicional, Lucille; e até mesmo sua pistola, que ele chama amorosamente de Gladys) e com um faro indestrutível para a violência, ele vai deixando um rastro de sangue por onde passa. É como um trem desgovernado de encontro a um muro de concreto. Não se sabe o que vai acontecer ao final da história até que aconteça...

No quesito visual, Sin City é um escândalo. Se existe uma razão para eu nunca ter me aventurado nesse mundo das graphic novels (e já disse em outros textos sobre quadrinhos que uma das maiores frustrações que eu tenho na vida é não saber desenhar) é o fato de que jamais conseguiria criar o mundo que Miller criou aqui. É simplesmente magnífico e único, impossível de replicar. E a ausência de cores engrandece ainda mais o seu estilo. O álbum é seco, lírico, brutal, cafajeste como somente as boas police stories conseguem ser. 

E por incrível que pareça (podem até me chamar de maluco por escrever isso aqui), mas senti de certa forma a presença espiritual da narrativa de autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, gênios da Black Mask, nessa obra-prima. Fora, logicamente, a influência eterna que Will Eisner e o seu extraordinário Spirit têm sobre o autor. 

Ao final da leitura minhas mãos coçam e eu leio tudo de novo, desta vez fazendo anotações num bloco. Procuro na minha coleção de dvds a adaptação para o cinema feita pelo próprio Miller e o diretor Robert Rodriguez, mas só assisto ao primeiro segmento (o que condiz com a trama do álbum e na qual Marv é interpretado pelo ator Mickey Rourke). E finalmente me dou conta de que estou em êxtase, diante de tamanho brilhantismo. 

Sin city é uma derradeira radiografia sobre as metrópoles esfaceladas deste século XXI, que se preocupam mais com relações comerciais e poder absoluto do que com vidas humanas. E dentro deste universo sujo Frank Miller insere uma fauna de personagens os mais vis e estereotipados possíveis (como, aliás, não poderia deixar de ser!). Logo, o resultado dessa equação amoral e sórdida é um espetáculo visual de proporções gigantescas e aterradoras. Portanto, tudo o que um bom leitor de quadrinhos poderia desejar. 

E se quiserem saber mais, vão - pelo amor de Deus! - ler e tirar suas próprias conclusões vocês mesmo. Trata-se de uma viagem pessoal e intransferível. E uma viagem ao inferno com passagem só de ida.   

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