Diz o senso comum que todo mundo tem um dom. Uns cantam, outros escrevem, a outros foi dado o dom de jogar futebol de forma sublime, fora os que atuam, desenham, dirigem cinema. compõem músicas, etc etc etc. E às vezes achamos o dom de certas pessoas menor, pois nossa petulância não nos permite enxergar o talento alheio nas mínimas coisas. Estamos enganados quando pensamos assim!
Ontem a cidade do Rio de Janeiro perdeu um de seus grandes talentos. E, no entanto, para muitos, ele era apenas alguém (mais um) que sabia desenhar. Não entendem que além de ele desenhar como poucos, fez de sua obra gráfica uma radiografia da cidade maravilhosa.
Falo do chargista e caricaturista Lan, mestre do traço, que faleceu em Petrópolis aos 95 anos, em decorrência de uma pneumonia.
Lan pode se considerar um privilegiado a depender de mim, porque desde moleque uma das primeiras coisas que eu vejo no jornal - em qualquer jornal - são as tirinhas e charges. Sempre me considerei um frustrado por não saber desenhar. E era fácil gostar do traço dele, de suas intenções gráficas. Poucos representaram a cidade do RJ e o Brasil como ele!
Portelense convicto, flamenguista apaixonado, mulherólogo por natureza (expressão, aliás, que ele utilizou se referindo a si próprio durante uma entrevista na TV) e um artista de visão única, que sabia ironizar, denunciar e encantar com o mesmo peso e medida.
O italiano de nascimento que viveu na Argentina, no Uruguai e na França encontrou aqui, na terra de Machado de Assis, do samba e do futebol, a sua verdadeira pátria. E dividiu sua carreira entre trabalhos para o Última Hora, jornal de Samuel Wainer que revolucionou a imprensa, o Jornal do Brasil e O Globo.
Detalhe importante: no jornal O Globo criou a coluna Cariocaturas, um de seus maiores sucessos. Aqui, denunciou a truculência policial, falou das distorções dessa metrópole controversa e nos impressionou com mulheres lindíssimas, de curvas descomunais. Sempre vou me lembrar das mulheres que desenhou e digo mais: além dele, acredito que somente Guido Crepax, autor da saudosa Valentina, tenha feito também um trabalho impressionante nesse quesito.
E quase ia me esquecendo: não bastasse tudo o que desenhou, sentiu, pensou, ainda arranjava tempo para assinar capas de discos, como as que fez para o cantor Zeca Pagodinho e vinhetas para os intervalos comerciais da programação televisiva.
O país e o mundo perdem mais um artista visual extraordinário - assim como aconteceu recentemente com Quino, criador da eterna Mafalda - e herdam um legado único, praticamente uma ensaio sociológico em formato visual.
E ainda assim vai ter gente dizendo que "era só mais um desenhista talentoso". Não, me desculpem a franqueza, mas não era só isso não!
E como eu sempre faço ao final desses obituários: fica com Deus, mestre!
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