Hoje é dia da consciência negra.
Correção: hoje deveria ser o dia da consciência negra, se nosso país - sempre mais afeito à intolerância, ao desrespeito, ao racismo, ao totalitarismo - tivesse de fato uma consciência. Uma consciência, digamos, humana. Ao contrário, o que vemos hoje é a morte de João Alberto Silveira Freitas, negro, soldador, 40 anos, espancado até a morte por um policial e um segurança na porta do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. Como legado esse senhor deixou mulher e uma enteada (e muitos por aqui nem disso querem saber!).
O problema, entretanto, é sempre mais antigo do que isso, do que a violência atual, a última corrida. Afinal de contas, muitos já não se lembram mais do rapaz estrangulado por um segurança do supermercado Extra. Alguns até dirão: "ah, isso já foi... é passado, não vende nem jornal mais!". Não, não foi. É. Continua sendo. Faz parte do DNA dessa pátria contraditória onde os nossos próprios governantes atuais alegam "não haver racismo no Brasil".
Já houve um tempo em que era simples dizer que negro, aqui, era caso de polícia. Hoje em dia é pior: é um caso grave, histórico, antropológico, com profundas raízes em nossa história colonial. Deturpa-se a história nacional como nunca antes na história desse país. Intelectuais brilhantes como Laurentino Gomes viram alvo de boçais e ignorantes que querem impor a sua verdade como única a qualquer preço. E em meio a todo esse clima de guerra, de desrespeito e alienação, sobra o quê para festejar? Pois é... Sobreviver, quando se pertence à etnia negra, passou de arte à sacrifício.
Numa igreja na Glória uma missa em homenagem ao dia da consciência negra é cancelada por ameaças oriundas de setores católicos à Arquidiocese. Sim, não são apenas os evangélicos o problema do momento. O problema é escolher um caminho, uma fé, uma sexualidade diferente da deles. O problema é ter "outra cor".
Hoje deveria ser um dia para celebrarmos Carolina Maria de Jesus, do extraordinário Quarto de despejo; de ovacionarmos o geógrafo Milton Santos; de engrandecermos figuras como o ator, poeta e dramaturgo Abdias do Nascimento - fundador do Teatro Experimental do Negro - e o ator e cineasta Zózimo Bulbul; de lembrarmos, mais do que nunca, de divas eternas como Ruth de Souza e Zezé Motta; de não esquecermos, sob nenhuma hipótese, do atleta olímpico João do Pulo, e tantos outros que a história oficial costuma varrer para debaixo do tapete o tempo todo.
E para quem quiser ter só uma pequena noção do descaso que é cometido com a população negra brasileira, procurem urgentemente por A negação do brasil: o negro na telenovela brasileira, de Joel Zito Araújo (há também uma versão em documentário, de 2000). E eu disse "uma pequena noção", pois o caso - já disse antes - é grave.
Mas não celebramos nada disso. Pelo contrário. Não passamos de ruído e incompetência. De achismo e arrogância. De negação à tudo, à ciência, à ética, aos valores, até mesmo à própria vida. Estamos, na verdade, cantando "perfeição", música de Renato Russo para o Legião Urbana que logo na abertura expurga os males desse país anunciando:
Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação...
E ainda assim há quem gargalhe, quem desdenhe, quem chame o racismo só de estrutural, quem o negue, com unhas e dentes. Já viram o presidente da Fundação Palmares? Eu tenho um vizinho que me disse outro dia que preferia que ele fosse branco, que talvez desse certo. Detalhe: meu vizinho é mulato. "Se há algo perto do fundo do poço no Brasil é a questão do negro", escrevi dois anos atrás na minha timeline no facebook. E isso precisa parar agora. Mas como?
Hoje, na verdade, se pararmos para pensar, é o dia da inconsciência, seja ela branca, negra, indígena, asiática, judaica, etc etc etc. E a grande maioria do povo não está nem aí, porque se acostumou ao que existe de pior, já está vacinado diante da barbárie e da intolerância, ou simplesmente "porque não é comigo".
E aí? Comemorar o quê mesmo, no fim das contas? A resistência, claro! Porque desistir nunca foi opção pra ninguém, que dirá pra quem foi massacrado a vida inteira.
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