A sétima arte realmente é insana e cruel, às vezes... Vejam por exemplo o caso abaixo:
Juntem um filme-homenagem aos cinemas de segundo escalão que forneciam como único entretenimento produções baratas, arranhadas, com atuações viscerais, ruídos em excessos, falhas na trilha sonora e na coloração da tela e um diretor cuja mente tresloucada e seu lado pesquisador fanático por temáticas as mais inusitadas é capaz de qualquer coisa.
Resultado: Um projeto autoral animalesco (Peraí... autoral? Feito em plena era de crise dos estúdios hollywoodianos quando a expressão risco zero - ou o que quer que isso significasse - virava clichê barato na língua de produtores, diretores e outros chefões das principais companhias?).
Assim é Grindhouse, um projeto a quatro mãos realizado pela dupla Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, a quem poucos realmente assistiram juntos no mesmo rolo nos cinemas, seja por incompetência da empresa distribuidora, seja por preconceito puro. Passados dois anos de seu lançamento na versão integral, À prova de morte, a metade tarantinesca, deu as caras mostrando a face cínica de seu realizador, um profissional que nunca escondeu ao longo da carreira o apetite pelo diferente e o chocante.
A grande marca pessoal de Tarantino está lá: a capacidade de transformar seus protagonistas em alter egos de sua própria - e irracional, que fique bem claro! - psique. E no caso de Stuntman Mike (Kurt Russell), o dublê fracassado que sai às ruas, furioso (mas sem perder o sorriso sedutor e aberto), atrás de suas vítimas inocentes, isso ainda fica mais evidente. Provavelmente é uma de suas criações mais autobiográficas, mostrando abertamente reflexos de suas influências construídas ao longo da carreira, como os debochados e subversivos Enzo Castellari e Russ Meyer, pais de uma - podemos assim chamar - sétima arte provocadora, insultante.
Como pano de fundo a toda essa agressividade visual, e eis o mais interessante de toda essa viagem tarantiniana, o cineasta constrói uma exuberante enciclopédia da falta de moral do mundo americano - algo já mostrado anteriormente em Pulp fiction -, onde todas as obsessões (o fascínio erótico pelas cheerleaders, eternas e rebolativas líderes de torcida; a lap dance, versão minimalista dos shows de striptease que alucinam os becos mais inóspitos das principais cidades americanas; a sensual apresentadora do programa de rádio a quem todos querem saber se o corpo, a silhueta, é tão sensacional quanto a voz que ouvem diariamente...) estão escancaradas.
E que não venham os leitores desta crítica me dizer que nunca se pegaram pensando sobre a dona de certa voz sensual de alguma rádio carioca! "Como será que ela é ao vivo e a cores?", numa hora dessas é uma pergunta mais do que óbvia, isso fora os desejos de consumo (a bolsa da Prada, o carro dos sonhos, etc) e fanatismos que fazem parte da ordem do dia para servir de "inspiração" à saga contumaz desse road killer.
À prova de morte é amoral, sim, e em nenhum momento nega isso. E Tarantino não alivia o espectador em momento algum quando o assunto é exacerbar a sua (ou do personagem, como preferir interpretar!) carnificina rodoviária.
Se havia espaço, naquela época, para cinema como esse em tempos de globalização e de investimentos no óbvio, fadado a quebra de recordes e bilheterias? Não faço a menor ideia. O que sei de fato, passadas as quase duas horas de projeção, é que se trata de um filme mais do que necessário para entendermos o ser humano da contemporaneidade e suas distorções comportamentais. Disso não há a menor dúvida.
Se por um lado você pensa "Putz! Esse filme é nojento, é atroz, é misógino até a medula", por outro fica clara a noção de que a humanidade realmente passou dos limites em muitas das decisões que tomou nas últimas décadas. E não há nada de cafajeste em deixar isso claro para o público. Não vejo essa abordagem como politicamente incorreta, pois certas vísceras e deslizes precisam ser mostradas, doa a quem doer.
Em suma: estamos diante da vertigem americana, aquilo que nossos irmãos da terra do Tio Sam sempre adoraram varrer para debaixo do tapete (e continuam varrendo até hoje, na maior cara de pau!). E ver toda essa morbidez iluminada pelo sarcasmo e o deboche de Mr. Tarantino não tem preço.
Eu sei, eu sei... Se você nunca viu À prova de morte, deve estar pensando: onde é que eu encontro essa relíquia? E caso já tenha visto, talvez tenha se pego dizendo a si próprio: eu deixei passar alguma coisa quando vi anteriormente. Preciso ver de novo, agora! Então aproveite a pandemia e o tempo livre. Você não vai se arrepender.
P.S (há tempos eu não escrevia um desses): eu nunca mais vi nada, nem no cinema nem em casa, com a atriz Rose McGowan. Por onde anda essa moça?
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