sexta-feira, 27 de março de 2020

Territorialismos


Todas as vezes que me perguntaram o que é mais extraordinário na história da sétima arte eu sempre respondi: "a capacidade de certos cineastas fazerem o seu trabalho repercutir além da geração para quem o seu cinema foi realizado". E há sempre uma lista imensa de filmes que cabem como uma luva nessa categoria. E dentre os filmes que vêm à minha cabeça toda vez que eu penso na lista desses filmes que foram além de sua própria época, é impossível não me lembrar de Faça a coisa certa, do diretor Spike Lee.

Lá se foram mais de três décadas e o longa de Spike não envelheceu um segundo sequer. Pelo contrário. Parece até que foi realizado no mês passado, na semana passada, tamanha a atualidade de seu discurso. E antes que os espectadores mais tradicionais e viciados num resuminho básico me aporrinhem, é preciso adiantar: Faça a coisa certa é um filme sobre territorialismos, sobre disputar espaço, qualquer espaço, o mínimo que seja, como quem luta pela própria vida. E isso, meus caros leitores e fãs de cinema, é muito maior do que qualquer sinopse que eu vá narrar aqui. 

Seus personagens buscam razões para lutar por sua própria identidade, mesmo quando tudo parece conspirar contra eles. E o pano de fundo para essas discussões e disputas de território, além da música forte e precisa do Public Enemy, é a câmera subjetiva do diretor que nos proporciona um grande passeio pela vizinhança numa América à anos-luz daquela que vemos todo dia nos tabloides e na programação da CNN ou da Fox News. 

E a estereotipia do lugar, é claro, chama a atenção com gigantesca facilidade. Se é possível falar em protagonistas, fiquemos então - na superfície - com o duelo entre Sal (Danny Aiello, fantástico!), o dono da pizzaria, point de grande parte dos moradores do bairro, e Mookie (o próprio Spike Lee), seu entregador, que vive reclamando do pagamento atrasado. Mas como disse no início do parágrafo é um protagonismo superficial, pois eles dividem a atenção com uma série de figuras que flertam com tipos sociais, embora tenham revolta e atitude própria para dar e vender.   

Radio Raheem (Bill Nunn), como diz o próprio nome, anda para cima e para baixo carregando seu rádio no mais alto volume e incomodando os outros moradores da região. E ai de quem mandá-lo abaixar o som! Da Mayor (Ossie Davis) é praticamente um Zorba, o grego da rua, sempre sugerindo soluções para os outros e tentando manter a paz a qualquer custo. Mother Sister (Ruby Dee) vê a vida passar da janela de sua casa, mas não perde a chance - quando a oportunidade lhe aparece - de palpitar sobre o que quer que seja. Buggin (Giacarlo Esposito) é aquele revoltado que existe em qualquer subúrbio do mundo. Deseja boicotar a pizzaria do Sal simplesmente porque ele não possui em seu hall da fama - a parede onde constam fotografias de clientes famosos - um homem negro sequer. Smiley (Roger Guenveur Smith) é o gago que perambula pelas ruas vendendo seus folhetos e lutando contra o preconceito daqueles que acreditam que ele deveria parar de encher o saco ou simplesmente desaparecer de uma vez por todas. E Love Daddy (Samuel L. Jackson), com suas tiradas no programa de rádio que apresenta, faz as vezes de cronista do cotidiano daquelas ruas sofridas. 

E isso porque eu fiquei somente nos moradores mais influentes. Mas uma dica aqui: prestem atenção no contexto geral. 

Digo isso porque, lógico, há sempre espaço para discussões entre vizinhos, crianças quase sendo atropeladas porque decidiram atravessar a rua na hora errada, brigas entre irmãos, a eterna guerra entre os policiais brancos que rondam a área e os moradores (detalhe: há uma sequência em que são exibidos os mais diferentes tipos de insultos que, por si só, vale pelo filme todo!) e a convivência difícil entre a comunidade negra e os donos de estabelecimentos comerciais de outras etnias. 

Embora Spike Lee tenha se consagrado por uma carreira cheia de sucessos, acredito piamente que seu estrelato esteja até hoje muito atrelado ao sucesso desse longa. Digo mais: acredito que foi aqui que começou a sua fama de ativista. E os fãs de sua gloriosa carreira têm muito a agradecer...

Até hoje me pergunto onde a Academia de artes e ciências cinematográficas estava com a cabeça quando premiou Conduzindo Miss Daisy com o Oscar e não esta pequena obra-prima, que gera reflexões valiosíssimas até hoje. A América contraditória que virou as costas para New Orleans após o furacão Katrina e que trouxe de volta à cena a Ku Klux Klan em plena era Trump tem aqui o seu embrião (embora muitos demagogos prefiram não enxergar dessa forma). 

Em outras palavras: os moradores do Brooklyn de Faça a coisa certa estão, embora prefiram não lembrar e se preocupar com questões mais pertinentes e agradáveis, sentados num enorme barril de pólvora, pronto para explodir a qualquer momento. E o fósforo que promoverá essa tragédia está na intolerância e na incompreensão de certos discursos. Porque o ser humano, infelizmente, nunca perde a mania de se achar mais do que os outros ou contar vantagem de si. Logo, esperar pelo pior não é uma promessa e sim uma realidade a longo prazo. 

Tenho (sempre tive) a curiosidade de ver a continuação desse filme com seus personagens mais velhos, digamos, 20 anos depois do incêndio que encerra o longa. Infelizmente o tempo passou e Danny Aiello não está mais entre nós (o que é uma perda irreparável). E não bastasse tudo isso Spike decidiu seguir um novo caminho, não menos denunciatório. Uma pena! Precisávamos - e muito - rediscutir o que foi iniciado aqui, principalmente depois do advento das novas tecnologias e a chegada das redes sociais. Como isso não aconteceu, que bom saber que pelo menos podemos revê-lo e repensarmos a sociedade quantas vezes quisermos! 


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