domingo, 15 de março de 2020

Cinismo em traços simples


Toda vez que eu leio quadrinhos eu vivo uma experiência única e ímpar. E essa experiência se processa de formas distintas. Às vezes o que eu quero é ser surpreendido pela genialidade de um grande mestre, quero ficar boquiaberto com o seu brilhantismo. Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, foi um caso desses. Melhor: foi um caso à parte em toda a minha relação com a nona arte. E às vezes só o que eu desejo é o simples, porém feito com extrema inteligência e elegância. 

As cobras, antologia de tirinhas de jornal escritas pelo mestre da crônica Luís Fernando Veríssimo, cai como uma luva nesse segundo grupo. E acreditem: as cobras dizem mais sobre o Brasil de ontem, de hoje e também (tenho certeza disso!) de amanhã do que muito economista e cientista político consagrado que vocês andam lendo por aí nos tabloides...

Porém, é preciso avisar aos desavisados (que estão sempre de plantão, xeretando aqui nos meus escritos): para aqueles leitores que estão acostumados com o apuro estético e o virtuosismo gráfico de quadrinistas como Frank Miller, Guido Crepax e Will Eisner, entre outros, procurem por outro trabalho mais complexo. Ficarão um tanto desapontados com este álbum. A máxima aqui é: traços simples e pena afiadíssima contra o sistema, a sociedade, o mundo controverso como um todo.

A força que rege o trabalho de Veríssimo está na ironia e no contexto denunciatório dos diálogos entre as cobras. Contudo, mesmo desempenhando de forma ácida o papel de protagonistas, elas não estão sozinhas no palco. Não, senhor! Volta e meia há a presença de outras espécies animais que interagem com o cinismo de ambas. 

E há cinismo, deboche e sátira para todos os gostos (e contextos) possíveis: sacaneiam a programação televisiva a torto e direito; debocham de relacionamentos amorosos e da geopolítica do mundo; tentam coabitar no cada vez mais corrido mundo do futebol (o que, por si só, já é uma gigantesca ironia); se colocam no lugar do criador, questionam suas decisões e escolhas; tratam das relações com o poder e o Estado, das angústias promovidas pela corrupção e pelo pessimismo crônico existente no país; ironizam a história do mundo (em alguns momentos numa linha que lembra o humor ácido do grupo Monty Python); tiram onda na praia, no melhor estilo carioquês; e arranjam tempo até para rir das passagens bíblicas, de forma inteligentíssima (mas claro que os cristãos insuportáveis não vão gostar!).

Como coadjuvantes de luxo (ou cereja no bolo, fica a critério de vocês!), os interlocutores das cobras: Queromeu, o corrupião corrupto; Mark Eting, o candidato perfeito; Dudu, o alarmista; Sulamita, a pulga lasciva; Felipe, o príncipe que virou sapo; Tia jiboia e a dupla de caracóis Flecha e Shirlei.

O volume é dividido em nove módulos e mesmo assim eu fiquei querendo mais ao final da leitura. Veríssimo não deve nada aqui ao que faz em suas costumeiras crônicas de jornal. Um humor afiadíssimo e antenado com a realidade do país. Se existe um escritor nacional que conhece o Brasil como poucos é ele! 

E o melhor de tudo: o presente que foi ter lido tudo isso online, em PDF, sem pagar um centavo. Não adianta: eu vou morrer amando a internet. Que me desculpem àqueles que a chamam de terra de ninguém. Vocês estão frequentando os lugares errados!

Agora chega de papo furado, saiam daqui e vão para o site Le Livros. Eu quero que vocês (que leram este artigo, é óbvio!) também conheçam esta pequena joia em forma de comics. Vão!

Sem comentários:

Enviar um comentário