terça-feira, 3 de março de 2020

O marginal popstar


O Brasil é um país que não muda porque não tem interesse em mudar, quer que tudo permaneça na mesma (de preferência, de acordo com os seus próprios interesses). Não bastasse isso, adora cultuar o errado, relativizar o que é crime e o que é boa ação. Bota tudo na conta do "veja bem...". E pensar que o diretor Rogério Sganzerla falava disso mais de 50 anos atrás e ninguém deu a menor bola. Nem naquela época, muito menos hoje! 

É com uma enorme satisfação que sentei em frente ao meu aparelho de tv esta semana para assistir o dvd de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla, clássico do chamado cinema marginal. E é também com uma enorme tristeza e um sentimento de impotência atroz que percebo que nada, absolutamente nada, mudou neste país que não consegue fugir da pecha de república de bananas. "Que país de merda!", dirão sem pestanejar aqueles que hoje migram em massa para Portugal. 

O longa, que estreou por aqui às vésperas do ato institucional nº 5, é um marco do nosso cinema (mas vive sendo taxado por quem não conhece nada da sétima arte brasileira e da nossa cultura em geral de "mais um exemplar da apologia à violência"). Coitados deles! Não fazem a menor ideia do que estão falando!

Paulo Villaça (ator que merecia estar em evidência no país até os dias de hoje) entrega um luz vermelha que é a cara do Brasil de ontem, de hoje e provavelmente de amanhã. E Sganzerla, diretor que fez parte do grupo que fundou o cinema novo, mas também quis seguir por outros caminhos mais ácidos, entrega aquele que é, para mim, o filme derradeiro sobre a nossa nação controversa, que adora idolatrar criminosos de todos os tipos. 

Luz vermelha é um marginal popstar, figura que volta e meia ganha os holofotes da mídia sensacionalista nessa terra ainda tupiniquinesca que chamamos equivocadamente de "país em desenvolvimento". É tão folgado que não só assalta casas, como dorme com as mulheres que rouba (e volta e meia elas se apaixonam por ele!) e ainda pede, de vez em quando, que elas façam um almoço para ele. Em outras palavras: é um artífice-mor dessa cara de pau que reina no Brasil há séculos. 

Talvez a única, de todas as mulheres com quem dormiu, que pudesse entendê-lo na íntegra fosse Janete Jane (Helena Ignez, musa dessa geração cinematográfica). Mas ela estava tão preocupada com o seu próprio oportunismo, sua própria beleza, que preferiu traí-lo. E pagou caro por isso, como tantos outros que atravessaram o caminho dele. 

Do outro lado da sede de status de Luz vermelha está o Delegado Cabeção (Luiz Linhares), que sofre do mesmo problema de Luz: ele busca também, a sua maneira, a notoriedade em primeiro lugar. Prender o bandido é apenas um detalhe perto do que representa ser reconhecido nas ruas como "o homem que prendeu Luz vermelha". E nesse momento Sganzerla realça um faceta típica de nossa sociedade que adoramos varrer para debaixo do tapete. Falo da eterna mania de fazermos péssimas escolhas baseadas em interesses escusos. Insira nesse contexto um pontada de fama e projeção e bum! eis aí o nosso exemplar ser humano de baixa categoria. 

Contudo, me corrijam vocês, leitores, se eu estiver errado, mas acredito que os grandes protagonistas de O bandido da luz vermelha são os dois locutores de rádio que narram essa saga inglória, fadada logicamente ao insucesso. Digo mais: ambos remetem à uma espécie de consciência, aquela voz incômoda, que nunca queremos ouvir, pois nossa egolatria não permite, mas está sempre apontando os caminhos certos ou, ao menos, aqueles que deveríamos prestar mais atenção. 

Mas vai explicar isso a uma nação que idolatra a ignorância desde a chegada de nossos patrícios em 1500?

Com seu filme-denúncia, quase manifesto de uma era que (ainda) não acabou, Sganzerla compõe uma tríade (junto com Terra em transe, de Glauber Rocha e A dama do lotação, de Neville d'Almeida) que optou por esmiuçar o Brasil ao invés de simplesmente deixá-lo para lá e vender belezas, fetiches e estereótipos. Aliás, tudo o que está acabando com o cinema da retomada. 

Certa ocasião num vídeo do you tube vi Quentin Tarantino se dizendo fã do longa e é fácil entender o porquê. Sganzerla foi, à sua maneira, na sua época, um Tarantino. Mesclou referências e brincou com formatos do jeito que quis e quando quis. E não à toa ganhou, para mim, ao lado de Glauber, o rótulo de gênio do nosso cinema. 

E é uma pena saber que a obra desse homem ande tão esquecida hoje em dia por parte de quem acha que sétima arte é sinônimo unicamente de efeitos especiais, super-heróis, CGI e mulheres masculinizadas interpretando vingadoras, assassinas de elite e caçadoras de recompensa! 

Ah, Sganzerla! É sério que você teve de morrer? Que falta você está fazendo aqui embaixo, meu amigo!

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