quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A crônica viva daqueles loucos 80


Ah que saudade daqueles tempos (e, claro, da minha adolescência, que eu daria tudo para viver mais um pouco se eu tivesse a chance)!

Há 35 anos - eu sei... era mais um moleque tentando entender o mínimo e não conseguia captar quase nada - aparecia no mercado fonográfico um álbum que era a cara daqueles anos 1980 loucos, sem freios, caóticos e também extremamente divertidos e alucinantes. Inimigos do rei, o disco de estréia da banda homônima que nasceu de um show no Paço Imperial, após a diretora do espaço reclamar do som muito alto. 

Na verdade, rei não fazia necessariamente alusão à ideia do monarca e era, isso sim, uma sigla para a expressão Rancor Endêmico Improdutivo. A banda se via como opositora ao sistema e se negava a diminuir o som de seu projeto. O resultado disso: uma crônica escrachada e alucinógena daquele período hoje visto como tão nostálgico e arrebatador. 

Na capa o artista gráfico Luiz Zerbini nos apresenta uma aquarela inspirada no pintor Botticelli (1445-1510). E acreditem: ela faz um contraste interessante com o conteúdo das letras, todas ácidas e cheias de deboche ao país e à cultura nacional. 

Seus maiores hits, até hoje cantados em festas flashback país afora, com certeza são "Adelaide", uma versão em português de You’ll Be Illin, dos rappers Run DMC, que nos traz a saga da anã paraguaia mais famosa do Brasil, e "Uma barata chamada Kafka", clara inflûencia do romance A metamorfose, do escritor Checo de ascendência alemã Franz Kafka.

Contudo, vale a pena destacar também composições como "Garotinha do front", que entre uma festa e outra, vê "políticos embaçados, desodorantes vazios, marinheiros tarados, executivos despedidos e corações de batom" de dentro de seu táxi-moradia; "Apocalipse Joe", o segurança da boate Fair Play, de plantão em hotel, de milionário gay, do hospital Pinel, de artistas siderais e de todas as gatinhas da cidade, que acaba afundando numa overdose em meio ao seu próprio delírio; e a atualíssima - provavelmente seria boicotada no Brasil de hoje - "Crime", na qual a banda correlaciona o mundo do crime com muitas classes ditas hoje privilegiadas e com práticas reprováveis da nossa sociedade. 

Recomendo aos leitores deste post que ouçam esta canção, disponível no you tube, assim que terminarem de ler aqui e tirem suas próprias conclusões!

Há ainda uma "Miss Goodbar" (seria homônima da personagem da atriz Diane Keaton no longa de 1977, dirigido por Richard Brooks? Se pudesse, perguntaria aos integrantes do grupo) e também "Suzy inflável", a namorada comprada numa loja erótica e amiga inseparável de todas as horas... Sim, em termos de loucura e subversão, o céu aqui está além do próprio limite. 

Também, não custa lembrar que eram tempos de compositores como Fausto Fawcett, Laufer, Júlio Barroso (vocalista do Gang 90 & as absurdettes); programas de auditório como Perdidos na noite, com Fausto Silva e bailes de carnaval transmitidos pela Rede Manchete por Rogéria e Otávio Mesquita fantasiado de repórter morcego. Logo, esperavam o quê naquela época? Sanidade?

E ainda assim, sinto saudades - como acredito que muitos da minha geração - de cada segundo do que foi ouvido aqui e vivido naquele tempo. E se você nunca ouviu o álbum resenhado neste texto, corra e ouça agora. Aposto o que for que vai mudar completamente a concepção de música e arte que vocês tinham até então.  

P.S (ou triste constatação): saber que a MPB passou disso - com toda a irreverência e estilo possíveis - para sertanejos que só fazem berrar, piseiro, axé bunda mole, música gospel e divas que se escondem atrás de corpos esculturais e bailarinos, é no mínimo de doer. Pensem nisso, meus caros leitores! 


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