sábado, 27 de junho de 2020

Irmãos de alma


A guerra não termina simplesmente porque os fuzis pararam de disparar ou as tropas bateram em retirada. Nada disso. Ela continua na cabeça dos soldados que lá estiveram e nas mentiras contadas pelos governos que a financiaram. Clint Eastwood estava certíssimo em A conquista da honra quando um de seus personagens disse: "a guerra não passa de um negócio e se não formos arrecadar muito no menor tempo possível, é melhor que ela termine o quanto antes". 

Em outras palavras: guerras existem para enriquecer nações tendenciosas e levar à morte àqueles que não se adequam ao sistema. Os homens negros, então, que o digam!. Qualquer outra coisa diferente disso (leia-se: patriotismo, dever cívico, etc) sempre me pareceu puro blá blá blá de quem gosta mesmo é de viver no mundo da lua.  

Dito isto, peguemos o exemplo de Paul (Delroy Lindo, simplesmente extraordinário!), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Stormin' Norman (Chadwick Boseman). Juntos eles formavam, na Guerra do Vietnã, o destacamento Blood. Mais do que isso: foram testemunhas oculares do inferno que levou à grande cicatriz que aquilo se tornou dentro da sociedade americana (quem quiser que me desminta, mas sempre achei que o Vietnã foi a página que os EUA nunca conseguiu virar). 

A guerra acabou - e vocês sabem muito bem quem levou a melhor -, Norman morreu em campo de batalha, mas antes disso o grupo escondeu um carregamento de ouro que seria usado como pagamento (e poderia ter levado ao fim da guerra ou, quem sabe, a uma espécie de trégua entre ambas as nações). Pausa para um grande fast forward... Cinco décadas depois os bloods sobreviventes decidem voltar às terras vietnamitas não somente para resgatar o ouro escondido, como também trazer de volta o corpo do amigo morto, a ser entregue aos seus familiares. 

Parece fácil no papel, não é mesmo? Mas como eu disse no primeiro parágrafo: a guerra nunca termina assim. 

O filme de Spike Lee é revisionista até o extremo e não somente isso: é um grande manifesto político sobre a história mal contada que o tio Sam adora narrar volta e meia para o resto do mundo.

Tirar o dinheiro do Vietnã é uma empreitada que envolverá uma série de dissabores, desavenças políticas e "homens de negócios" inescrupulosos sempre aptos a lucros fáceis e oportunistas. E não bastasse tudo isso esses cinco irmãos de alma - pois é nisso que a batalha os tornou, mesmo depois de tantos anos - ainda terão que contar com imprevistos os mais diversos, fora a própria relação entre eles, que em algum momento ficará estremecida. 

Como pano de fundo o diretor faz aquilo que conhece de melhor (e que já havia feito em seu longa anterior, o também acusatório Infiltrado na Klan): o enche de homenagens, ironias e erratas as mais diversas. Atletas que a América preferiu varrer para debaixo do tapete, discursos antológicos de Angela Davis, Martin Luther King e Mohammad Ali, sobra até para o cinema brucutu de Sylvester Stallone e Chuck Norris (na visão dos personagens, heróis de "guerras imaginárias"). 

Enquanto isso, Marvin Gaye, gênio da Motown, dita o tom da trilha sonora e ela por si só já vale, a meu ver, meio filme. Se você não é fã de Marvin, convido-o a parar de ler essa crítica e se retirar daqui imediatamente. Você não merece ver esse filme. Mesmo. 

Quase ia me esquecendo... Prestem atenção no monólogo de Paul na selva vietnamita. É devastador no sentido de apontar as falhas de inúmeros governos federais passados, com uma cutucada especial no atual presidente. A morte de George Floyd e todas as manifestações que se seguiram, acabaram por tornar o longa um artefato quase profético. E, além do mais, Ele, Paul, é desde o primeiro momento o elo fraco do pelotão. Aquele que pior lidou com a guerra, tanto que acabou por se tornar uma figura extremamente autodestrutiva. E o monólogo em questão, mais do que um simples desabafo, é de uma verdade avassaladora. 

O longa termina depois de duas horas e meia de dor e reflexão. E ao fim dessa catarse o que temos é um novo acerto de Spike - mestre desde os tempos de Faça a coisa certa e Malcolm X -, que andou um período em baixa, realizando produções anos-luz de sua capacidade crítica. Quem conhece sua filmografia sabe que seu dedo acusador, expondo as eternas hipocrisias made in USA, é sua marca registrada. E aqui, assim como no filme anterior, ele encontrou espaço para brilhar. 

E eu fiquei pensando ao fim: "e ainda tem gente que se voluntaria para participar de guerras". 

P.S (eu preciso dizer isso): obrigado, Netflix! De novo. Só uma empresa como a de vocês para fazer frente à enxurrada de super-heróis e franquias que vem tornando o cinema americano bobo e vazio. Já estou à espera do próximo projeto foda.    

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