A cada dia se torna mais difícil (pelo menos para mim) entender o que significa Deus para o mundo. Eu ando pelas ruas cada vez mais descrente com os religiosos - e olha que eu nunca os tive em alta conta, sempre desconfiei do "excesso de fé" de certas pessoas, o autoritarismo, a eterna mania de excomungar aqueles que não comungam dos seus interesses, por vezes, escusos. E quando transportamos essa realidade cinza para as favelas e comunidades a situação se complica ainda mais.
Digo isso porque acho meramente impossível permanecer lúcido e coerente em meio a pessoas que escolheram a ignorância e a alienação religiosa como modus operandi para pautar suas vidas. Em outras palavras: é como conversar com objetos inanimados.
Esta semana me deparei com uma graphic novel de autoria do jornalista Gonçalo Júnior e do desenhista Flávio Luiz que me deixou ainda mais desesperançoso sobre o futuro de nosso país (o que não significa que ela deva ser boicotada pelos leitores; longe disso... Trata-se de uma narrativa extremamente genial e feroz sobre a hipocrisia que rege nossa nação há décadas). Falo de Messias.
Messias mostra a dura discrepância e deformação social que rege os discursos em pauta no país nos últimos anos (e olha que a revista foi criada entre 2002 e 2005, logo mais de uma década atrás). Seu protagonista sobrevive a uma chacina na favela onde mora e passa a ser tratado pelos moradores da localidade como salvador da pátria, como o escolhido, aquele que "libertará o povo menos favorecido do eterno amordaçamento e penúria onde vivem".
Ele cresce, vê na religião uma grande arma ideológica onde poderá criar o seu império e, com isso, atrair muitos seguidores, antenados com sua causa contraditória. E, lógico, torna-se o problema do qual o Estado precisa se livrar. Resultado: a cidade - que poderia estar localizada em qualquer região do Brasil - torna-se um front de guerra de proporções quase apocalípticas.
A ausência de diálogos durante toda a história é, aqui, uma escolha proposital da dupla de autores. Eles querem que o público leitor construa, cada um à sua maneira, a sua própria narrativa, tire suas próprias conclusões. E claro: trata-se de uma realidade que nós, brasileiros, já conhecemos de cor e salteado, pois somos uma das nações mais violentas do mundo. Portanto, não há muito o que inventar de inovador nesse sentido (obs: considero a mudez nesse caso muito bem-vinda, principalmente em tempos de muita histeria e pouco conteúdo).
As referências aqui presentes para construir o protagonista, vilão, messias, são as mais diversas: vão desde Robin Hood (que tirava, vocês lembram, dos ricos para dar aos pobres) à Antônio Conselheiro (mártir de Canudos) passando, é claro, pelo genocida e ditador Adolf Hitler.
Destaque imprescindível: o storytelling de Flávio Luiz é formidável. Ele bebe na fonte do mestre Will Eisner - criador do eterno Spirit - para criar uma história de fôlego e muita revolta. Escolhe uma decupagem que flerta com o estilo europeu, fazendo com que o álbum pareça, em alguns momentos, uma grande animação. E ao final do trabalho, no comentário crítico anexo, descobrimos que ele tomou de empréstimo ideias de outro gênio da nona arte: o eterno Katsuhiro Otomo, criador do lendário Akira. Mais interessante do que isso, impossível.
Recomendo aos leitores, se puderem, leiam a obra gráfica mais de uma vez. Para preencher as entrelinhas que porventura tenham ficado da leitura original e captar melhor detalhes preciosos da trama (de certa forma, a falta de balõezinhos e diálogos o impele à tal escolha, pois trata-se de uma história complexa, repleta de nuances).
Ao final da inebriante experiência - eu devorei o álbum em pouco mais de 40 minutos e o reli logo em seguida, por não acreditar à primeira vista no que meus olhos viram - o que Messias nos oferece é uma ode sangrenta (que muitas vezes nos deixa perplexos pensando tratar-se de uma fábula, pois não queremos acreditar que a realidade é bem mais cruel do que isso) sobre a falência de uma nação na qual todos os setores sociais imprescindíveis, mídia, igreja, estado, corporações, etc, conspiram por um bem comum (no caso: a ganância) e travestem seus interesses grotescos de um discurso falacioso "em nome de Deus".
E eu confesso: tenho muito medo do que (ainda) vem por aí...
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