Listas são problemáticas. Digo mais: elas são a ruína quando o assunto é o debate sobre a sétima arte. Por quê? Porque elas não definem - nem de longe! - o que é o fazer cinematográfico. No máximo explicam o gosto particular de um indivíduo, o que ele considera como cinema. E como todo espectador que se preze é fruto de uma época, acho extremamente natural que ele não considere certos clássicos do cinema como os "seus clássicos".
E é preciso salientar aqui: acho muito difícil que a atual geração que frequenta os cinemas hoje em dia - uma geração baseada no que produtoras como a Disney e Netflix, só para ficar em duas das maiores (ou mais visíveis) - venha a considerar gigantes da sétima arte como Federico Fellini, Ingmar Bergman, John Ford, Akira Kurosawa, Roberto Rossellini e tantas outras feras em suas listas pessoais. Eles, a tal nova geração, buscam uma outra relação com o cinema, mais voltada para a bilheteria, a perpetuação das mesmas ideias (na forma de remakes, spin-offs, sequels, etc), a grandiosidade dos efeitos especiais, os orçamentos milionários...
E qualquer outro debate, em tempos de Rotten Tomates e Metacritic influenciando quem vive à sombra dos mesmos temas, torna-se menor ou desnecessário.
Dito isto, a nova lista dos melhores filmes da história do cinema produzida pela revista Sight and Sound - publicação que sempre polemiza e incomoda com suas escolhas a cada nova década - ganha um novo contorno de discórdia. Mas cabe aqui um aparte importante: fosse quem fosse o número 1 da referida lista o debate seria o mesmo (e preconceituoso), que dirá a insatisfação de determinados grupos cinéfilos que vivem de resmungar e falar mal de tudo.
O número 1 do famoso top 100 da revista nesse ano de 2022 - após, nos últimos anos, testemunharmos o legado de Cidadão Kane, de Orson Welles e a liderança na última edição de Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock - é Jeanne Dielman, de Chantal Akerman (1975). E bastou que um filme dirigido por uma mulher encabeçasse a lista para que os revoltados de plantão rugissem, com as mesmas diversas - e despudoradas - reações.
"É a mania de enaltecer esse feminismo de butique vigente hoje em dia";
"Maldito cinema experimental! Está acabando com a sétima arte";
"Essa gente maluca de revista só quer mesmo é aparecer, não entende nada de cinema";
"O cinema morreu de uma vez por todas!"
E etc etc etc... e outros milhões de desnecessários etcs.
Na prática, entretanto, o que temos é - pelo menos, para mim - uma grande provocação por trás dessa escolha.
Jeanne Dielman é um longa-metragem de 3 horas e 20 minutos (tudo que os imediatistas mais detestam!) que se debruça sobre a história de um dona de casa, viúva, que vive com o filho adolescente, e paga suas contas mensais levando homens para o seu apartamento, onde exerce a profissão de garota de programa. É... Já vejo os conservadores babacas de sempre gritando: "enalteceram uma puta! era só o que faltava!".
Mais do que isso, o filme de Chantal Akerman - que é uma sublime artista e eu recomendo aos leitores deste texto que procurem por sua filmografia - é um consistente ensaio sobre a rotina sufocante do dia-a-dia. E é nesse exato momento que reside a grande bronca dos detratores da lista.
Como fazer com que um grupo gigantesco de alienados cinéfilos, que resumem o cinema à IMAX, CGI, 3D, cenas de ação intermináveis, o culto aos blockbusters que não passam de caça-níqueis, heróis musculosos e personagens canastrões que emulam um estilo de vida vazio, entendam que a sétima arte é mais do que isso? Não foi à toa que citei num parágrafo anterior a palavra provocação.
A decisão da Sight and Sound ao colocar Jeanne Dielman no topo da lista provoca os amantes do cinema - sejam lá quem eles forem - a sair da sua zona de conforto, da sua bolha existencial baseada em maniqueísmos fajutos e discursos vagos. E eu, claro, gosto muito dessa tentativa heroica por parte da publicação. Redescobrir-se como espectador é, para mim, uma grande missão. E assim deveria ser para os outros (embora muitos prefiram idolatrar o comodismo).
Ao fim dessa rápida explanação (que se promete também polêmica quando eu postá-la em minhas redes sociais, repletas de fãs enjoados que adoram uma reclamação e um mimimi), digo: continuo detestando a ideia de listas dos melhores do que quer que seja. Elas limitam o debate e isso é sempre muito ruim. Contudo, é preciso elogiar esse caso específico, pois os cinéfilos e adoradores da sétima arte precisam urgentemente sair de suas trincheiras culturais. Do contrário, o cinema não evoluirá nunca. Pior: morrerá no espaço-tempo.
E o que eu menos desejo quando penso em sétima arte é a permanência do banal, do óbvio, travestido de espetáculo barato. Tudo, menos isso!
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