O ano de 2020 que encerrou - e já foi tarde, a meu ver - nos ofereceu um terrível legado para ficar guardado nos anais da história: foi um ano de feminicídios. Atos bárbaros, praticados pela covardia e a opressão masculina, que já nos provou por a mais b estar a cada dia mais sofisticada. Nunca antes tantas mulheres morreram em tão pouco tempo e tanta gente encarou isso como algo tão natural.
Às vezes tenho a impressão de que a sociedade já se encontra em modo anestesiado e perdeu completamente o senso de absurdo das coisas. Vivemos num país doente e preferimos simplesmente nos acostumar a essa ideia, pois é melhor, para muitos, do que lutar contra.
Contudo, para nossa felicidade (minha e das pessoas que ainda não desistiram totalmente do país e do mundo) ainda existem pessoas dispostas a falar contra tanta brutalidade de forma simples e eficaz. E elas, com certeza, merecem todo o meu respeito. Eu até poderia fazer desse texto um enorme desabafo radical contra os opressores e assassinos, mas prefiro dividir minhas impressões sobre o genial e extraordinariamente humano livro de poesias Meu corpo, minha casa, da poeta indiana Rupi Kaur.
Rupi repete a fórmula de sucesso de seus livros anteriores - os também indispensáveis Outros jeitos de usar a boca e O que o sol faz com as flores - e apela para o sentimento, os traumas e a força de vontade para que as mulheres consigam lutar contra a sombra negra proporcionada pela misoginia, um mal-estar sem fim de nossa civilização.
Ela, inclusive, abre seu livro com duas frases imprescindíveis: "depois de tanto tempo separados minha mente e meu corpo enfim voltam a se encontrar" e "nunca estive num lugar tão sombrio quanto este", deixando claro para os leitores que o tema em questão - no caso, o abuso sexual - exige cuidado e muita inteligência ao ser esmiuçado, pois pode provocar reações controversas dependendo de quem o leia.
Dividido em quatro tomos: mente, coração, repouso e despertar, nos traz um acúmulo de dores, mas também de muita esperança, para os dias que virão. Rupi nos diz que vê sua vida parada no tempo, enquanto a das outras pessoas prossegue normalmente. Vê no sexo, na maneira como ele aconteceu na sua vida, de forma abrupta, brutal, covarde, um quase assassinato. E confessa: não vê o menor prazer nele. Afinal de contas, teve sua infância roubada por homens inescrupulosos por causa dele.
Ela chega a gritar em certo momento: "Quero de volta a minha vontade de viver!" E sabe de antemão que esta não será um tarefa nada fácil. O abuso que a acompanha não está presente somente nos romances e flertes, mas também em falsas amizades e coleguismos. Entretanto, embora solitária ela não está sozinha nessa luta. E é justamente quando ela percebe sua força interior que o livro começa a ganhar um novo contorno. Trata-se de encarar o bom combate, como disse certa ocasião em um de seus livros o escritor Paulo Coelho.
Rupi tem muitos medos acumulados dentro de si: o de envelhecer, o de não poder escrever nunca mais, o de não conseguir atender às expectativas do mundo e da sociedade... Mais: ela guarda dentro de si toda a vergonha do mundo. Aqueles que a violaram produziram isso nela e hoje preferem o esconderijo da negação, algo bem compatível com a realidade fake news na qual estamos vivendo. Em poucas palavras, ela habita entre o romantismo do passado e a preocupação com o futuro e isso, por si só, já é espinhoso em demasia.
E, por isso, na segunda metade da coletânea, decide enveredar pelo otimismo, apontando possíveis caminhos e soluções que enfrentem de igual para igual a maldade visceral dos homens. Esmiuça várias definições de eu te amo, nos entrega uma lista de como sobreviver aos covardes e suas artimanhas, exalta a masturbação como um direito a se conhecer melhor, não admite fingir ser menos inteligente diante de certos modelos masculinos, fala da vida de refugiado e da dificuldade do pai, um homem trabalhador, para colocar comida na mesa quando ela era criança.
E tudo isso porque, palavras dela, "estou despertando da noite mais longa da minha vida".
Mas não pensem que ela deixa de dar suas alfinetadas, não!. Longe disso. Rupi relembra o genocídio Sikh ocorrido em 1984, questiona o modelo feminista atual, que só se interessa por alçar mulheres a condição de poder (algo que eu sempre critiquei na postura empoderada de certas mulheres vazias do nosso país) e diz que a classe precisa, isso sim, retomar as rédeas de suas vidas.
Ao fim das pouco mais 200 páginas, que eu li de uma toada só, como se fosse um único poema narrativo, chego a conclusão de que a autora construiu uma nova versão dela mesma, uma versão aprimorada, corajosa, que sabe os desafios que deverá continuar enfrentando, mas agora de forma mais lúcida, sem dar tanta trela àqueles que só queriam (e ainda querem) lhe usar. Grande Rupi. Desejo a você toda a sorte do mundo.
E que bom seria se nós, homens de verdade, aprendêssemos um pouquinho só com suas sábias palavras!
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