Não conheço uma pessoa remotamente sã que seja capaz de explicar o que é a vida. E que bom que assim seja.
A vida é complexa, nos faz sorrir, chorar, sentir dor, nos irritar, pensar em desistir de tudo, em continuar tentando, lutando, sobrevivendo, aguentando até onde dá, só mais um dia, só mais um, e de repente dá tudo errado e você volta e recomeça e faz de novo e não satisfeita ela te desafia de novo, quer te colocar no chão como um pugilista malvado, mas você não deixa e chama ela para um outro round e mais um e mais outro... Ufa! Não é mole, não! A vida não é para principiantes.
E qual não foi a minha surpresa ao ver a Disney Pixar falar sobre a vida (e, é claro, a morte) para um público que a priori sequer começou a entender o que ela é de fato. Mais uma vez a casa do Mickey calou a minha boca, fazendo aquilo que os filmes adultos não têm tido coragem de fazer.
Em Soul, animação dirigida por Pete Docter, acompanhamos a trajetória de Joe, um professor de música num colégio infantil cujo maior sonho é trabalhar como pianista de jazz, algo que ele vem labutando há muitos anos sem sucesso. Quando a oportunidade aparece, podendo acompanhar a lendária Dorothea em seu quarteto, ele morre e se desespera ao conhecer o que chamamos de pós-vida. Tão desesperado que acaba furando a barreira e indo parar no pré-vida, onde crianças estão sendo preparadas para o início de suas existências.
Ele sabe que seu lugar não é ali, mas o considera melhor do que simplesmente morrer e aceita trabalhar como mentor para uma dessas novas jovens almas. O problema: recai sobre ele a difícil missão de ser o mentor de 22, um alma rebelde, extremamente relapsa e que não tem o menor interesse em viver. Mas ele precisa encontrar uma maneira de fazê-la acreditar que a vida vale a pena. Até que um acontecimento inusitado ocorre e todo o seu plano inicial vai pelo ralo.
Antes de qualquer outra coisa que eu diga sobre Soul é imprescindível que eu elogie o conjunto de vozes escolhidas para este projeto. Jamie Fox e Tina Fey - que dão voz, respectivamente, à Joe e 22 -, Alice Braga, Angela Bassett, o apresentador de tv Graham Norton... Eu não costumo recomendar a versão original em inglês para quem não conhece o idioma, mas se tiverem a oportunidade de ver ambas, legendado ou dublado, assistam. O trabalho deles é sensacional. Bem como as escolhas musicais para a trilha sonora.
Dito isto, vamos à minha impressão principal: durante toda a projeção me veio à mente uma expressão latina chamada "memento mori" ou, numa tradução livre, "lembre-se de que é mortal". E esse, para mim, foi justamente o conselho que Joe não ouviu ao longo de toda a sua vida.
Ele passou tanto tempo pensando em realizar o seu maior sonho - o que, de certa forma, era uma maneira de também realizar o sonho do pai, já falecido - que acabou por esquecer de viver. E esse me parece um dilema que acompanha grande parte da humanidade. Projetamos nossas felicidades em realizações extraordinárias, impérios gigantescos, e na maioria das vezes, desaprendemos a entender a necessidade do simples, dos pequenos gestos em nossas vidas.
Colocamos como prioridade uma suposta felicidade que tentamos explicar para os outros e não conseguimos. Corremos atrás de uma riqueza que não levaremos conosco quando não estivermos mais por aqui. E ainda assim, achamos tudo isso, toda essa distorção, extremamente natural.
John Lennon, vocalista dos Beatles, dizia que "a vida é o que acontece enquanto estamos fazendo planos" e estava coberto de razão. Passamos a vida a planejar e esquecemos completamente de vivê-la, de encarar o dia a dia. Preferimos chamá-lo de chato, monótono, de mesmice. E a vida, na maior parte do tempo, é o que você faz dela. Então, meus caros leitores, carpe diem (impossível não lembrar do mestre Robin Williams dizendo isso aos seus alunos em Sociedade dos poetas mortos!).
P.S: o visual estético do longa é de uma exuberância assustadora. É definitivamente um Oscar bait.
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