Primeiramente um aviso de suma importância:
Esta crítica é desaconselhável para menores de idade e moralistas em excesso. Quem quiser seguir em frente, está por sua conta e risco!
Era uma vez um cineasta de nome Neville D'Almeida, que decidiu seguir seu próprio caminho e suas próprias ideias e não se rendeu a um sistema hierárquico de produção. E apesar de saber das distorções culturais promovidas por seu país no que diz respeito a cultura e entretenimento, mesmo assim preferiu ser fiel a seu próprio talento e transgressão. O resultado disso: nasceu um dos artistas mais odiados - e formidáveis - da história da nossa sétima arte.
Procurei pelo documentário Neville D'Almeida - Cronista da beleza e do caos, do diretor e crítico de cinema Mario Abbade, nos cinemas na época de seu lançamento no ano passado e quebrei a cara. Culpa de nosso circuito exibidor que adora boicotar produções cinematográficas que não atendem aos padrões do que os donos de cinema no nosso país querem de fato exibir. Frustrado, decidi esperar por sua exibição no Canal Brasil (provavelmente a única boia salva-vidas de muitos cinéfilos como eu que esperam por lançamentos nacionais e nunca encontram salas de projeção disponíveis para eles). E a consequência dessa espera foi a certeza de estar diante de uma produção brilhante e um dos melhores filmes que assisti neste ano.
O filme viaja na mente sórdida e inteligentíssima de um de nossos maiores realizadores em toda a história da sétima arte nacional. Diretor de clássicos como A dama do lotação (durante 15 anos considerado a maior bilheteria da história do cinema nacional), Rio babilônia e Os 7 gatinhos, Neville é um provocador de mão cheia e a certeza de que nosso audiovisual também possui exemplares que não se submetem a regras impostas por políticas audiovisuais enfadonhas e leis de incentivo tendenciosas.
O primeiro grande barato de assistir ao longa de Abbade é a grande discussão que ele promove ao conversar com antigos colaboradores de Neville sobre cenas polêmicas de seus filmes (muitas vezes taxadas de imorais ou pornográficas). Dentre as cenas analisadas, a da piscina em Rio Babilônia, que muitos consideram até hoje ter sido sexo real, Sônia Braga na cena do Ônibus em A dama do lotação, pela qual virou o maior mito sexual do cinema brasileiro e o jovem que assassina os pais a sangue frio em Matou a família e foi ao cinema, filme pelo qual o diretor ganhou a fama de assassino da família brasileira. Só pelo debate envolvendo os que o acusam de pornógrafo e tarado e os que defendem suas escolhas artísticas já valeu ficar acordado até as duas da manhã para ver o filme.
Neville ficou mais associado ao cinema marginal do que ao chamado cinema novo e ele próprio faz uma crítica sobre o assunto no longa, chamando os integrantes do cinema novo de "os bons moços da sétima arte, os privilegiados" enquanto que aqueles que desafiavam a sociedade e o Estado vigente eram sempre rotulados de marginais, celerados, criminosos.
O segundo ponto alto do filme a meu ver é um reconhecimento muito bem vindo (que eu próprio já fizera anos atrás, quando comecei a assistir seu trabalho) ao fato de que Neville D'Almeida foi o único cineasta nacional a realmente adaptar Nelson Rodrigues para o cinema como ele merecia. Ninguém na história do audiovisual brasileiro entendeu o anjo pornográfico e meteu o pé na lama por ele como Neville. E acreditem: quem conhece a obra de Nelson, principalmente a teatral, sabe que isso não é pouca coisa!
Entre polêmicas de bastidores (a história da festa que teria virado orgia por falta de estrutura e organização da equipe de filmagem, a imagem eternamente erotizada de que suas atrizes só poderiam trabalhar sem calcinha, pois do contrário não seria um fllme de Neville D'Almeida, etc) e entrevistas engraçadíssimas com atores e equipe técnica que trabalharam com ele (as declarações da Regina Casé por si só valem como um esquete de humor), o filme no final das contas nos apresenta um grande ensaio sobre uma mente subversiva de nossas artes, mas não menos brilhante.
Se por um lado Neville não tem o reconhecimento dos mais intelectualizados e engajados politicamente (vide a polêmica por trás do filme Jardim de Guerra feito em 1968, em plena era do A-I 5 militar, e nunca exibido nos cinemas brasileiros por conta da censura), não é verdade que os membros do nosso cinema mais badalado na época (refiro-me à Glauber Rocha, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, etc) o desprezassem. Pelo contrário. Ele é visto por muitos deles como o grande visionário da nossa sétima arte.
O filme chega ao fim, após mostrar os últimos longas do diretor que não tiveram a mesma repercussão de seus dias de glória, mas não fiquei em nenhum momento com a sensação de estar diante de um cineasta datado. Continuo vendo artistas como Neville como forças-motrizes importantíssimas para entendermos o nosso cinema. Não fosse por esse senhor no passado certamente não teríamos hoje cineastas tão emblemáticos como Cláudio Assis e Gabriel Mascaro denunciando a hipocrisia de nossa sociedade.
Levanto-me cansado do sofá para ir dormir, mas com a certeza de ter assistido um dos maiores documentos memoriográficos já feitos sobre a história do cinema nacional até hoje. E fico pensando tristemente: por que o nosso cinema não consegue hoje ter de novo um pouco dessa coragem, dessa ousadia, dessa vontade de dizer foda-se para o sistema?
Ou resumindo: será que em algum momento perdemos nossa relevância e não nos demos conta? Espero sinceramente que não.
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