sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A peregrinação ontem, hoje, amanhã...


O que faz o teatro, arte maior dentre todas as artes pois ao vivo, diante de um cenário social onde nosso próprio direito à liberdade de expressão é tolhido e vê-se abertamente o retrocesso e a ignorância ganhando status e força dia-a-dia sem podermos sequer reagir? Simples. Ele recorre a voz dos mais necessitados e aquela que é considerada a maior obra literária brasileira do último século. Para quem não faz a menor ideia do que eu estou dizendo, refiro-me à João Guimarães Rosa e seu maior feito narrativo. 

Grande sertão: veredas, montagem teatral da multiartista Bia Lessa, pega carona num ontem de sofrimento (porém mais atual do que nunca em nossa sociedade fragmentada) para falar dos dilemas que provocamos hoje, agora, nesse país polarizado e cada vez mais ignorante, principalmente no que se refere à ética. 

A saga do jagunço Riobaldo, que busca prevalecer sobre seu arqui-inimigo Hermógenes, chegando a fazer um pacto com o diabo, enquanto almeja um final feliz com seu amor, Diadorim, é o retrato eterno da luta de classes que rege esse país contraditório desde os tempos em que Cabral aportou por aqui com suas caravelas. E nesse espetáculo extremamente midiático e moderno (é impressionante a maneira como a diretora remodelou a história, trazendo-a para os dias atuais sem perder a sua essência clássica), vale a pena ficar de olho, ser detalhista, para não perder um momento sequer de genialidade. 

A instalação que serve de palco aos atores é por si só um espetáculo à parte (tanto que pode ser visitada pelos espectadores a qualquer hora, antes mesmo do começo da peça, para que eles tenham dimensão da grandiosidade da montagem). Detalhe: nos assentos, os mesmos espectadores se deparam com fones de ouvido que deverão colocar para acompanhar a peça e ter uma percepção sonora completamente diferente da qual estamos acostumados nesse segmento. 

Quando as luzes se apagam e o show começa o que vi diante de meus olhos foi uma grande peregrinação (acredito ser essa palavra que melhor resume a montagem) de um homem humilde, sofrido, vivendo no cu do judas, mas que acredita na busca de sua redenção pessoal. Vejo em alguns sites algumas pessoas se referindo a Riobaldo como um grande filósofo e acho a comparação bem-vinda. Ele é um grande Sócrates do sertão, cheio de pequenas e brilhantes teorias. Mais do que isso: um homem que busca explicação para todo o sofrimento pelo qual tem de passar e mesmo assim o enfrenta com unhas e dentes. 

Contudo, ele não está sozinho nessa jornada. É acompanhado por seus amigos e seguidores, homens e mulheres que como ele já se acostumaram também a tanta provação e a falta de vontade política para melhorar a vida dos mais necessitados. 

Lembro que quando li o romance de Guimarães Rosa a primeira impressão que tive foi a de apavoramento. Era tudo tão real, mas tão duro, tão ácido, tão cruel, que me deixou arruinado, prostrado ao chão. Anos depois eu vi a adaptação feita pela Rede Globo em formato minissérie, com Tony Ramos e Bruna Lombardi na pele do casal Riobaldo e Diadorim e tive de novo a mesma impressão (no caso, apreensão) e virei fã de vez do texto, pela coragem de apontar o seu dedo acusador para o Estado cada vez mais leniente e opressor. 

Acho que foi a primeira vez na minha vida - e olha que já frequento teatro há tempos! - que eu gostaria de fazer parte do elenco de uma peça. Achei tudo tão vivo, dinâmico, de um brilhantismo e uma coragem únicas. A mesma Bia Lessa, por sinal, está fazendo também uma montagem inovadora de Macunaíma, obra-prima do modernista Mário de Andrade. E já fiquei curioso para assistir também. Mais que isso: quero captar mais um pouco da coragem desta mulher. Ah! As mulheres! Estão dando um banho nesse século XXI cheio de manhas e com vontade de guerrear por nada. Meu eterno respeito a elas.

O espetáculo se encerra e as pessoas aplaudem, choram, repensam suas vidas, repensam esse país controverso pós-eleições. Grande sertão: veredas é antes de tudo um convite à mudança, pedindo que nós, seres humanos covardes, tomemos uma providência. Não dá mais pra ficar de braços cruzados. A peregrinação não é só um momento. Ela é todo dia, ontem, hoje, amanhã, sempre. Pois os donos do poder nunca vão parar de nos castrar. Portanto, também não podemos parar de sonhar, não podemos desistir, não podemos entregar tudo de mão beijada. Agora não.

Mais do que nunca, agora é tudo ou nada. 

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