sábado, 5 de outubro de 2019

A loucura como instinto de sobrevivência


Eu tenho andado pelas ruas do Rio de Janeiro nos últimos tempos e acompanhado notícias a respeito do mundo pela internet e pela tv e confesso: ando descrente do que vem por aí. Tenho a legítima sensação de que a sociedade perdeu sua lucidez (e isso é muito grave!). Não é de hoje que percebo a falta de relevância da humanidade no que concerne a valorizar o que realmente merece valor. Todo dia me deparo com deformadores de opinião online, programações televisivas alienantes, feitas para lobotomizar uma sociedade que não tem parâmetro para quase nada. E pior: essas mesmas pessoas ainda buscam popularidade por seus atos, digamos, sórdidos. E acreditava piamente que estava vendo tudo isso sozinho. 

Até assistir Coringa, do diretor Todd Phillips.  

O longa - que ganhou a pecha de polêmico antes mesmo de ficar pronto, por conta de uma parte moralista da sociedade que adora colocar panos quentes ou cercear a liberdade dos outros quando bem lhe convém - conta a história de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix, devastador!), um sobrevivente deste mundo falido em que vivemos, que vive de pequenos bicos que faz como palhaço enquanto cuida de sua mãe enferma. Seu maior sonho é tornar-se um humorista do stand-up comedy tão famoso quanto o seu ídolo, Murray Franklin (Robert de Niro). Contudo, ele não se adequa ao padrão do que a sociedade conservadora considera "apto" para uma carreira como essa, e passa sua existência lutando para permanecer vivo um dia de cada vez, enquanto paga as contas. 

Ele volta e meia é agredido, sofre deboche de seus próprios colegas de trabalho, é visto como "o esquisito" do local. E sua risada sarcástica, fruto de uma condição psicológica que possui, retrata melhor do que palavras a maneira como ele se posiciona diante do sarcasmo e da ironia dos demais. 

A partir do momento em que comete seus primeiros assassinatos e logo a seguir conhece a verdade sobre sua própria história de vida um gatilho é disparado em sua mente e tudo aquilo que ele manteve aprisionado dentro de si, tentando compreender ou fazer parte do contexto social, perde completamente o sentido. E é nesse exato momento que sua loucura - que nada mais é do que uma forma de instinto de sobrevivência em relação ao mundo - toma controle da situação, fazendo nascer um dos seres humanos mais brutais e maquiavélicos que já existiram.

Pior do que isso: seus atos bárbaros e levianos viram motivo de orgulho para a parte menos favorecida da sociedade (os chamados palhaços, na visão de quem detém o poder e nada faz pelos mais pobres). Ele passa a ser visto como um símbolo desse reacionarismo muito vigente no mundo contemporâneo em que habitamos, e talvez por isso muitos espectadores comecem a dizer que o filme não passa de uma glamourização do mundo do crime e da bandidagem, algo que já havia acontecido anos atrás com o longa O lobo de Wall Street, de Martin Scorsese, sobre a vida dos inescrupulosos agentes da bolsa de valores norte-americana.

Pergunto-me então nesse momento: como impedir o inevitável, quando nos deparamos com um mundo extremamente dividido, desigual e baseado numa concentração de renda brutal? Que me desculpem os defensores da moral e dos bons costumes, mas me parece quase impossível que num contexto desses não apareça um louco como Arthur Fleck. O contrário é que seria uma grande ironia. 

Como pano de fundo à paranoia do Coringa, o diretor - que ficou consagrado aqui no Brasil pela trilogia Se beber, não case - recorre a filmes icônicos dos anos 70, como Táxi Driver e Rede de intrigas e traz um pouco do espírito anárquico do extraordinário O rei da comédia

Aliás, falando em anarquia, a construção do personagem feita por Phoenix, que mostrou uma fisicalidade que eu não via no cinema desde os tempos de Buster Keaton, dá margem - pelo menos para mim - para pensá-lo como um grande agente da anarquia deste século XXI, que anda prometendo em seus discursos de ódio uma "nova ordem mundial" baseado certamente em atos catastróficos. 

O monólogo final do protagonista e todo desastre recorrente por conta disso, confesso, me deixou apavorado sobre o mundo em que estamos vivendo, bem como temeroso sobre o tipo de espectador que assistirá este filme. Não o recomendo para pessoas de estômago e cabeça fraca. Seu roteiro, embora simples, é duro, incisivo, parece uma faca na jugular dos moralistas de plantão. Não é à toa que tem tanta gente temerosa dele sendo exibido numa época como atual. Porém, ao contrário dos conservadores, acredito sim que ele deva ser assistido e entendido nas suas entrelinhas, e não simplesmente aplaudindo ou repudiando sua violência. Já passou da hora de nós, como sociedade, encararmos a violência como um assunto a ser debatido seriamente e não varrido para debaixo do tapete. E nesse sentido Coringa dá um show à parte ao mostrar as distorções frequentes de uma sociedade ilógica e doente. 

Ao final da sessão, diferentemente dos filmes dos Vingadores, nada de aplausos. Não é um filme de super-heróis, onde homens de bem salvarão a nação de algum mal. Pelo contrário. é um filme que fala da sociedade como a própria vilã da história e isso deixa um gosto amargo na boca. Contudo, tem que ser desse jeito. Isso tem que ser engolido como um xarope ruim.

Pois ou acordamos ou o desfecho desse sintoma será ainda pior...

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