Certamente o maior legado que o Coronavírus trouxe para a sociedade foi a proliferação - e, sob certa medida - a banalização das apresentações ao vivo (ou, como costumamos chamar popularmente, as lives). Pronto. Com estas quatro linhas já criei território suficiente para que meus detratores me acusem de insuportável, mau caráter, entre outros "elogios modernos".
Porém, não importa o quanto eles reclamem. Infelizmente minha percepção sobre as apresentações ao vivo mudará depois desta quarentena. E é preciso que eu me explique.
Faço parte de uma geração que viu o Rock in Rio e que se lastimou de não poder estar presente no festival de Woodstock, apoteose máxima do quesito show. Nada superou Joe Cocker cantando "with a little help from my friends", clássico dos Beatles, ou Jimi Hendrix dedilhando sua guitarra ao som de "star-spangled banner" (ou mesmo colocando fogo nela, no hoje famigerado Monterey Pop). Isso sem contar Elvis Presley, Frank Sinatra, os doces bárbaros, Novos baianos, Renato Russo, Cazuza, etc etc etc (eu sei... são muitos etcs).
Corta para: século XXI, uma era onde, incrivelmente, quase todos se consideram artistas ou celebridades. E não bastasse isso foi acometida por uma crise pós-pandemia que retirou de muita gente seu ganha-pão. Resultado: vamos para a internet apresentar alguma coisa, qualquer coisa. E se pudermos, vamos faturar com isso.
E tem live sobre praticamente tudo: cantor sertanejo se embebedando gratuitamente (e chamando isso de politicamente incorreto), bandas de rock, cantores de forró, palestras motivacionais, debates de cunho político, festivais de cinema online na linha #fique em casa, espetáculos teatrais polêmicos e muito, muito mais.
E a imagem que me fica gravada na cabeça durante tantas lives que presenciei foi a dos QR codes pedindo doações para famílias que perderam sua renda. Contudo, nos bastidores, o que se vê também são muitos patrocinadores. Sim, meus amigos. Muitos não estão ali por caridade. E já existem aqueles, acreditem!, que viram no filão um grande mercado a ser explorado no futuro. Eu prefiro acreditar em "expansão da carreira".
Acredito sinceramente que o mercado de entretenimento mudará suas diretrizes em vários setores. As peças teatrais de menor orçamento, que não vivem de patrocínios e leis de incentivo para se custear, verão no formato live uma boia salva-vidas. O streaming ganha mais força com festivais online de cinema. Até as exposições ganharam sua versão à distância (o que vem gerando atritos no mercado de arte).
Mas como dirão muitos gestores ou formadores de opinião lá na frente: "são outros tempos, e é preciso diversificar".
E desse fenômeno e exagero das apresentações ao vivo nasce uma cultura efêmera, de ideias que não se repercutem, que morrem na praia muito antes do tempo, que foram criadas previamente para ser instantâneas. Uma pena. Produzir cultura já foi bem melhor do que isso.
Ano passado um colega meu, cansado desses artistas de plástico, dessas celebridades efêmeras que ganham projeção sem o menor critério, me perguntou o que aconteceu com nossa cultura que não era mais capaz de produzir talentos como Gilberto Gil, Milton Nascimento, José Celso Martinez Corrêa, Chico Buarque, Débora Colker, Plínio Marcos, entre tantas feras (a lista que ele me citou era imensa). Eu parei por um instante, levei em consideração o que era a sociedade contemporânea, e lhe respondi com uma pergunta: "você acha realmente que a atual sociedade merece uma geração artística melhor do que essa que aí está?". E ele se calou.
Vejo em muitas das pessoas - não todas, é lógico, pois há sempre exceções inteligentes - que produzem essas atuais lives uma corroboração desse pensamento.
Vivemos numa era em que o lucro diz mais sobre o país em que vivemos do que o talento. Em outras palavras: o importante é faturar e se mostrar o tempo todo (que o diga Anitta!). E a consequência disso é uma cultura pobre, artificial, feita para melhorar contas bancárias e status sociais. E mais uma vez repito: uma pena. Que tenha de ser desse jeito.
E pensar que ainda tem gente que acredita que a solidariedade vai proliferar depois da pandemia... Pobres cegos dessa pós-modernidade!
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