domingo, 26 de julho de 2020

Essa confusão sou eu


Eu me tornei cinéfilo e consequentemente um interessado em escrever sobre filmes - embora não me considere um crítico especializado - para poder enxergar além da própria sétima arte. Sempre fui um fascinado pelo set de filmagem e a todo momento procuro no mercado editorial livros contendo histórias sobre os bastidores dos grandes longa-metragens. E nessas procuras me dou conta, às vezes, de que a película, o resultado do projeto, é um reles detalhe. Quero mesmo é conhecer a história desses artistas e o que eles fizeram de suas próprias vidas e carreiras. 

Pois bem: volta e meia me pego pensando na reflexão proposta por este parágrafo e chego à conclusão de que o melhor exemplo que eu poderia dar para explicar de forma cinematográfica o que escrevi é a obra-prima Oito e meio, do cineasta italiano Federico Fellini. E digo mais: em se tratando de um filme em que o próprio diretor confessava em entrevistas estar incompleto - daí o título da obra, que é seu nono longa-metragem -, é impressionante a genialidade dele. Fellini era realmente um mestre que deixará saudades eternas, na Itália e no resto do mundo. 

Guido Anselmi, protagonista desta jóia rara (e interpretado por Marcello Mastroianni), é um cineasta que foi da glória e o reconhecimento à crise de inspiração - ou, como costumam chamar alguns, o bloqueio criativo - e agora sente-se sugado em todos os sentidos. Contudo, ele promete um novo filme à seus produtores e é justamente nesse momento que os problemas começam. 

Sempre envolto por belas mulheres e fazendo a todo momento digressões que remetem à sua infância, uma época em que era mais livre e não precisava dar satisfações sobre cada passo que dava, ele se vê engolido por um mercado exibidor que o enxerga apenas como  uma reles engrenagem dentro de um processo criativo. E à medida que o tempo passa e o roteiro ou mesmo uma ideia geral do que seja o projeto não surge sua angústia atinge um nível nunca antes alcançado em toda a sua carreira. 

Logo, ele precisa ganhar tempo. E faz isso através de sucessivas mentiras ou evitando contatos e conversas mais longas sobre tudo o que verse a respeito do "novo e genial filme que virá".

Há pontos interessantíssimos a serem evidenciados no longa, que não somente refletem bem a personalidade de Guido, mas também o fato de ele ser um grande alter-ego do diretor. Em primeiro plano destaco a trilha sonora, belíssima, que ilustra bem o clima nonsense, de preocupação constante do diretor em crise (cheguei a acreditar, em alguns momentos, estar diante de uma "ópera do absurdo"). Logo a seguir, cabe aqui o meu elogio à maneira como Fellini flerta com o surrealismo nesta narrativa visual. Ele, que sempre viu sua obra associada ao sonho e ao delírio, aqui - a meu ver, pelo menos - realiza o seu projeto que mais remete ao mestre Salvador Dalí. Talvez muitos que leiam esta crítica achem um exagero da minha parte, mas honestamente tive de fato essa impressão. E finalmente, a presença da figura das musas (são muitas!) de Guido, uma referência clara aos gregos, mas também às paixões do próprio Fellini. 

Há um embate claro entre o filme que Guido deseja realizar, um trabalho apaixonante, autobiográfico e sem licenças poéticas, e toda a expectativa gerada por aqueles que o cercam e fazem a máquina da indústria cinematográfica girar. Em outras palavras: Oito e meio é um filme sobre bastidores. sobre aquilo que não vemos, mas acontece em todas as produções do gênero. 

Refiro-me às brigas entre a equipe de filmagem; a dificuldade do realizador em manter seu casamento vivo; as difíceis, quase insuportáveis, audições para escolha de elenco; a crítica e a imprensa em geral perseguindo o realizador de forma insistente, à procura de informações sobre o que ele fará a seguir, etc etc etc e hajam incômodos e desnecessários etcs que só contribuem para atrasar ainda mais o projeto. 

O que vemos antes das câmeras serem ligadas e o diretor gritar "ação!" está tudo ali, de forma nua e crua, sem rodeios ou invencionices. Toda a bagunça da pré-produção, as ideias primárias que não funcionam, não se concretizam nas telas, os atores cheios de pitis e exigências constantes... Tudo aquilo capaz de enlouquecer o mais normal dos mortais e, no entanto, faz parte da rotina de qualquer realizador da sétima arte, pois não fosse assim não iríamos apreciar sua saga nas salas de cinema. Em suma: uma confusão generalizada que visa um espetáculo posterior. 

E como o próprio Guido/Fellini diz ao final do longa: "essa confusão sou eu". Esse acúmulo de experiências, memórias e derrotas as mais diversas dão, de certa forma, um caráter quase metalinguístico ao filme. E Fellini, de uma maneira ou outra, sempre perseguiu isso em sua carreira. 

E passados 57 anos sem envelhecer uma vírgula sequer e ao final dos mais de 130 minutos de projeção impecável só me resta, orgulhoso, ver meu rosto encher de lágrimas e levantar para aplaudir de pé essa obra-prima do cinema italiano. 

P.S: em 2009 o diretor Rob Marshall dirigiu Nine, que se pretendia uma nova visão sobre essa história. Fui ao cinema na época para assisti-lo e saí meio desapontado. Mais uma vez hollywood moralizou uma história consagrada pela sétima arte de um outro país transformando-a naquilo que ela não era (no caso, um musical). Eles adoram fazer esse tipo de coisa. E eu espero sinceramente que um dia eles parem com isso!  

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