quinta-feira, 21 de maio de 2020

Traidores da pátria podem ser fabricados


Quando conversávamos, meu pai volta e meia me dizia uma frase que nos últimos anos tem me acompanhado de forma insistente: "tome cuidado com os calhordas, pois eles sempre andam acompanhados, sempre andam em maior número; eles precisam de companhia para tramar seus planos sórdidos". Eu não entendia direito o que ele queria dizer com isso, já que era muito novo, mas hoje eu reconheço: ele estava coberto de razão. 

Vivemos, infelizmente, num mundo de acusadores. E haja espaço para tanta acusação infundada! A sensação que eu tenho é que perdemos a noção do que é legítimo, do que é verdadeiro, e passamos a comprar qualquer teoria ou lenda urbana que nos satisfaça. Eu sei... A sociedade não se cansa de apodrecer dia a dia. 

Entre os muitos acusados da atual indústria cinematográfica, principalmente em tempos de #Metoo, há um caso à parte e o nome dele é Roman Polanski. Não bastasse tudo o que ele passou na época do assassinato da sua então esposa, a atriz Sharon Tate, pela execrável família Manson, há anos ele precisa lidar com uma acusação de estupro - tem quem chame de condenação - crime cometido em 1979, à uma jovem menor de idade. Essa sina o acompanha desde que eu me entendo por cinéfilo e já li vários artigos e matérias sobre o caso. Na verdade, a figura pública de Polanski sempre me interessou, bem como sua obra cinematográfica.  

E eis que Polanski decide levar toda a discussão movida contra ele nessas últimas quatro décadas para uma abordagem artística, realizando o extraordinário O oficial e o espião, baseado no livro do escritor Robert Harris (autor que o próprio Polanski já havia adaptado em 2001, quando realizou o também ótimo O escritor fantasma). 

O oficial e o espião se utiliza do notório julgamento do Capitão francês Alfred Dreyfus (Louis Garrel), acusado de trair a pátria ao vender informações estratégicas para uma nação estrangeira, para refletir sobre o hoje, sobre o que hollywood se transformou depois das recentes e inúmeras acusações de assédio envolvendo a meca do cinema, e principalmente sobre aquele que eu considero o maior delito do ser humano: a inveja. 

Dreyfus, embora membro do exército, era justamente aquilo que a grande maioria dos cidadãos da época não gostava de ver na figura do homem bem sucedido: era judeu e um homem que não levava desaforo para casa, que lutava por seus ideais com unhas e dentes. E quando pensamos - quando eu, com certeza, penso - num homem desses dentro da hierarquia militar, logo dispara em minha mente um pisca-alerta: "em algum momento, vai dar merda". E ela aconteceu, levando o então capitão à detestável Ilha do Diabo, lugar para onde são mandados aqueles que o governo, o país e a sociedade querem definitivamente esquecer. 

O problema: a descoberta, por parte do Coronel Georges Picquart (jean Dujardin, vencedor do oscar de melhor ator por O artista), de que na verdade o traidor da pátria não foi Dreyfus. Ele nunca passou de um reles bode expiatório nas intenções de uma instituição corrupta até a medula. E Picquart decide investigar o caso, contra tudo e contra todos, levando sua própria carreira ao caos. Querem fazer dele um novo Dreyfus, para que todos entendam que ninguém pode desafiar o exército. 

Vejo na figura de Picquart muito do Polanski que hoje mal pode sair de casa. Ele virou uma versão moderada de escritores como Salman Rushdie e Roberto Saviano, perseguidos por terem opiniões que contradizem o que conhecemos como sistema. E aqui, nessa exuberante adaptação, ele dá um excelente tapa com luva de pelica na cara de seus detratores. 

Em outras palavras: aqui ele expõe as fragilidades do mundo, seja em que formato ou plataforma ele se apresente. 

Pausa para uma memória recente: vi um vídeo no youtube que mostra a reação furiosa do público à vitória do diretor no prêmio César deste ano. Acredito piamente que se um chimpanzé tivesse ganhado o prêmio naquela ocasião, sairia de lá ovacionado. Qualquer um poderia vencer a estatueta, menos Polanski. Contudo, vejo também muito de violência gratuita no ato. Mais: um desejo de colocá-lo no seu devido lugar. 

Polanski é diretor de longas fortes, em alguns casos incômodos, mas que marcaram época. O melhor exemplo disso em sua carreira é O bebê de Rosemary (quem nunca o viu, assista-o o quanto antes!). E depois do assassinato da esposa, como mencionei acima, ele virou uma espécie de persona non grata em hollywood, acusado de "atentar contra a moral americana". 

A acusação/condenação por estupro que o acompanha é apenas uma tampa no caixão oferecida por um segmento moralista do mundo, que adora eleger heróis e fabricar vilões ao seu bel prazer. 

Dreyfus, assim como Polanski (guardadas as devidas proporções), é também um traidor fabricado para atender as demandas conservadoras de um fragmento da sociedade. E nem mesmo o sublime discurso de Emile Zola em J'acuse foi capaz de o inocentá-lo perante certas pessoas. Infelizmente, ele teve de carregar consigo essa ambiguidade, essa dúvida. Acredito que Polanski terá que lidar com o mesmo dilema até o fim de sua carreira e, consequentemente, de sua vida. 

Vilão ou injustiçado, pois nunca saberemos o que ele (diretor) realmente é, no final das contas, pois a sociedade prefere o revanchismo, a vaidade e a inveja (tudo brilhantemente disfarçado de acusação) do que os fatos concretos, a verdade pura e simples. E como já disse antes em outras críticas que fiz: a verdade, na prática, nunca passa de uma versão dos fatos. E nós, seres humanos, nunca quisemos realmente que ela fosse mais do que isso.   

"Então o que nos sobra?", certamente perguntarão os cinéfilos mais interessados em saber se a película vale a pena ou não (e acreditem: vale e muito!). Sobra a nós a certeza de que Polanski continua vivo e com uma mente afiada, não disposto a se render ao discurso de seus algozes. Eu, que já o considerava carta fora do baralho dentro do mercado audiovisual, fiquei não só em êxtase como ansioso por seu próximo projeto. Longa vida ao mestre! 

P.S (dessa vez quase não teve, mas eu tenho que dizer uma coisinha): você, leitor desta crítica, que não gosta do indivíduo Roman Polanski, saiba diferenciar o homem do artista. São duas pessoas completamente diferentes. Isso vale também para Woody Allen, Alfred Hitchcock, e tantos outros...

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