Vejo Elis Regina cantando num vídeo do you tube:
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel...
E vejo as lágrimas fugirem do rosto.
O equilibrista, meus caros amigos e leitores, tombou. E caiu de uma forma melancólica, imerecida, digo até injusta. Logo ele, dono de tantos talentos, capaz de realizar as maiores façanhas poéticas e musicais, detentor de um olhar único sobre o malandro carioca e o suburbano, terminar desse jeito!
Só mesmo neste país abarrotado de contradições.
Perdemos hoje o grande compositor Aldir Blanc, por complicações envolvendo um quadro de pneumonia e também a famigerada covid-19, que tem tirado a vida de tantos nos últimos meses.
Difícil começar a falar de Aldir, pois ele era um homem multimidiático em todos os sentidos. O melhor exemplo do que deve ser um artista, seja no Brasil, seja em qualquer país do mundo.
Nascido no Estácio (bairro sambista por excelência), escolheu a princípio a medicina - onde tinha se especializado em psiquiatria - como forma de expressão. Mas para ele, isso era muito pouco. E logo a trocou pela música popular brasileira, esta sim sua verdadeira paixão.
O resultado disso? uma coleção de hits inigualáveis como "dois pra lá, dois pra cá", "mestre-sala dos mares", "bala com bala" e, é claro, a eterna "o bêbado e o equilibrista", canção hoje vista como libelo da democracia e que voltou à baila em tempos de gente pedindo a volta do passado negro nesta pátria distorcida.
Foram ao todo mais de 500 composições.
Aldir também foi um grande interessado na defesa dos direitos autorais por parte dos artistas. Prova disso foi seu envolvimento, ao lado de Gonzaguinha e Ivan Lins, na fundação do Movimento Artístico Universitário (MAU). O garoto, que fundou o Rio Bossa Trio ainda jovem, provava ali que era danado, que não iria baixar a cabeça assim tão fácil. E não baixou.
Escreveu, poetizou, rimou, ajudou a fundar o bloco carnavalesco Simpatia é quase amor, em Ipanema, teve inúmeros parceiros de garbo (Moacyr Luz, Maurício Tapajós, Carlos Lyra, Guinga, Edu Lobo, Wagner Tiso, Cristóvão Bastos, Roberto Menescal e o maior deles, o amigo do peito, João Bosco). Em suma: aprontou esse malandro. Como só ele.
Enveredou também pela literatura e mostrou ser um excelente cronista. Mais: realizou uma grande cartografia do subúrbio carioca. Li dois de seus livros: Rua dos Artistas e Arredores (1978) e Um cara bacana na 19ª (1996). E ao terminar a última página em ambos, fiquei extasiado. Com sua capacidade de criar boas histórias. Principalmente: histórias humanas, verdadeiras, do cotidiano.
Ops! Quase me esqueço de falar de sua contribuição - também como cronista - para os jornais O Dia, O Globo e O Estado de São Paulo. A imprensa jamais me perdoaria se eu deixasse essa informação passar em branco!
Nos últimos dias, temos perdido o melhor de nossa arte: Moraes Moreira, Rubem Fonseca, Luiz Alfredo García Roza, até o Flávio Migliaccio, da série infantil Shazam e Xerife, partiu. E agora o Aldir completa o time também. Que 2020 é esse! Tenho medo do que ainda vem por aí.
Mas como dizia o próprio Aldir, não dá pra baixar a cabeça porque "a esperança equilibrista/ sabe que o show de todo artista tem que continuar". E tenho certeza, continuará.
Valeu, mestre! Fica em paz.
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