De todos os artigos póstumos que eu fiz até agora este aqui foi o mais difícil. E me refiro a todo o processo, desde a decisão de falar sobre o falecido até a redação final. Entretanto, aprendi lendo sobre jornalismo cultural e outras áreas da mídia, que nem sempre é possível homenagear somente àqueles em quem acreditamos em gênero, número e grau. Às vezes, aqueles de quem discordamos em muitos aspectos também fazem parte de nossa formação cultural e, por isso, é preciso falar sobre eles.
Refiro-me à crítico de cinema Rubens Ewald Filho que nos deixou nos últimos dias.
É difícil para mim elogiar totalmente ou reclamar totalmente de uma pessoa como Rubens Ewald Filho. No final das contas, a conclusão a que chego é a de que ele dividiu opiniões a maior parte do tempo enquanto exercia o seu ofício.
Para muitos hoje em dia, principalmente no momento em que vivemos num país polarizado e apegado ao passado como se ele fosse algo glorioso, o parágrafo anterior seria o suficiente para que eu não perdesse tempo falando de Rubens. Contudo, como o tema em questão aqui é a crítica cinematográfica e ela nunca se prestou a ser uma ciência exata. repleta unicamente de virtudes e achismos óbvios, é preciso que eu o defenda. E quando digo defender é por acreditar que faz parte do papel social do crítico transitar por sentimentos os mais diversos. Não conheço um crítico sequer - seja no cinema, na tv, no teatro, na literatura, etc - que não tenha incomodado um pouco que seja conservadores extremistas e as patrulhas ideológicas de sempre. Em outras palavras: ser crítico de cinema não é sinônimo de elogiar ou vender um bom filme e detonar um ruim.
Meu primeiro contato com Rubens Ewald Filho se deu através de seus guias de cinema (para muitos, uma boia salva-vidas valiosíssima para para os mais ferrenhos cinéfilos e amantes de sétima arte). Ali, conheci diretores de prestígio, atores e atrizes lendários e pérolas que nossa televisão não era capaz de exibir por razões óbvias e comerciais.
Dali para seus comentários em transmissões do Oscar ainda na Rede Globo foi um pulo. Com ele, entendi que cinema não era sinônimo daquilo que o circuito exibidor abraça. "É preciso conhecer aquilo que nossos cinemas não querem exibir, pois estão interessados em se manter de pé", é o que parecia dizer o velho crítico toda vez que o ouvia. E ele sempre esteve certo nesse sentido.
É bem verdade que ele também participou de algumas bolas fora, como por exemplo sua presença no longametragem Amor, estranho amor (sim, aquele que a Xuxa vive tentando proibir sua comercialização!), mas nada que não possa ser perdoado pelos verdadeiros fãs do bom cinema. "Mesmo os famosos erram", bem dizia meu pai, fã de westerns com John Wayne, Gary Cooper e Clint Eastwood.
O tempo passou, Rubens ganhou prestígio, chegando a apresentar (não somente comentar) os principais prêmios da indústria cinematográfica norte-americana pelo canal a cabo TNT e eu, claro, o acompanhei durante anos.
Porém, como todo sucesso excessivo faz pessoas públicas de todos os tipos passarem do ponto, ele acabou se tornou um moralista chato, inconveniente, desses que acaba falando muitas vezes o que não deve. E o mundo mudou em termos de sociedade (se para melhor ou pior, fique a critério de vocês, leitores, responderem). O pior exemplo dessa faceta a meu ver aconteceu numa cerimônia do Oscar em que a atriz transexual Daniela Vega, do filme Uma mulher fantástica, apareceu para entregar um dos prêmios e Rubens se referiu a ela como um rapaz (isso em plena era de luta pelos direitos do grupo LGBT). Pronto. Estava criado o climão e não demorou muito ele começou a ser boicotado das transmissões. Um final infeliz para quem foi referência no setor durante tantos anos.
Durante a minha graduação na faculdade escrevi meu TCC sobre a passagem da crítica cinematográfica dos tablóides e jornais impressos para a internet e não quis o nome de Rubens Ewald Filho em meu trabalho, por considerá-lo muitas vezes ultrapassado. Hoje, confesso, teria dado ao mestre uma segunda chance. Enfim... Quis citar o episódio aqui para mostrar o quanto sua figura profissional era complexa e por vezes mal interpretada.
Dito tudo isto, a imagem que me fica do velho crítico bonachão, de voz inconfundível, com cinco graduações e uma memória fotográfica, é a de um defensor incontestável do cinema nacional (inclusive de expoentes mais perseguidos da nossa cinematografia, como o cinema da boca do lixo em SP e a pornochanchada, onde tinha muitos amigos), dos cineastas clássicos (leia-se: Fellini, Bergman, John Ford, Antonioni, etc) e o de uma referência ímpar, um sinônimo de cinema. Não fosse ele certamente a crítica cinematográfica não teria se tornado o que se tornou no Brasil nos últimos anos (que o diga o sem número de podcasts, sites e youtubes sobre o tema atualmente!).
Assiste a última sessão, mestre! Você merece...
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